sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Decidir certo é decidir bem

Certa vez, em uma dessas reflexões que surgem na timeline do Facebook, uma amiga postou uma citação de uma autora que não irei lembrar no momento, mas que poderia ser traduzida no seguinte sentido: nunca poderemos saber se uma decisão que tomamos foi certa, pois nunca podemos voltar no tempo para decidir novamente. Essa reflexão, a primeira vista, faz todo sentido, afinal, não podendo voltar no tempo para experimentar quais resultados eu obteria caso decidisse outra coisa numa determinada questão, estaria fadado a nunca ter a segurança de que optei certo. Todavia, é preciso ter dois cuidados com esse pensamento. O primeiro deles é mais teórico, já o segundo é mais prático.

O primeiro cuidado, o teórico, é que, pensando logicamente e centrando a atenção em um única escolha, não podemos saber (ter a segurança de 100%) a que outros caminhos me levariam uma outra decisão a respeito de determinada questão que resolvi no passado, assim como os bons historiadores sabem que é difícil imaginar como a história seria se um determinado fato histórico não tivesse ocorrido. Todavia, isso não quer dizer que não posso saber se a decisão que fiz foi certa. Por quê? Porque, antes de tudo, devemos pensar sobre o que queremos dizer por “decisão certa”. Imaginar que haja um caminho escrito nas estrelas que deveríamos seguir, apontando para uma única decisão certa a cada problema que tivermos, de maneira que poderíamos falar NA DECISAO CERTA (única) sempre, ao contrário de todas as outra que seriam as erradas, não me parece boa coisa.

Poderíamos, ao invés disso, dizer que uma decisão certa seria uma boa decisão. E o que é uma boa decisão? Uma decisão que, depois de tomada, rendeu bons efeitos práticos, ao estilo do pragmatismo. Ou seja, foi uma decisão certa porque funcionou, foi boa. Uma outra decisão poderia ter sido melhor ainda? Não tem problema, pois as duas, funcionando, seriam boas e, portanto, certas, caso seus efeitos práticos tenham sido positivos. Mas, para verificar os efeitos de uma decisão, ela precisa já ter sido tomada. Sendo assim, como faço para ponderar uma decisão certa, boa, antes de decidir? Aqui entra o segundo cuidado.

O segundo cuidado que devemos ter com o pensamento do primeiro paragrafo é mais prático. Digo isso porque, apesar de logicamente fazer sentido que não possamos averiguar os diversos resultados de uma decisão tomada caso ela fosse tomada diferentes formas, isso não significa que em nossas decisões diárias paremos por aí. Como já vimos, depois de tomada uma decisão, podemos avalia-la pelos seus efeitos práticos; mas, e antes de decidir, como eu pondero qual a melhor escolha?

Se fossemos levar a sério a reflexão postada por minha amiga, tomaríamos qualquer decisão, afinal, tanto faz, nunca saberíamos se ela foi “a certa” mesmo. Poderíamos até tentar abdicar de decidir, coisa que Sartre nos avisou que é impossível.  Porém, sendo a decisão certa aquela que funciona e é boa, antes de tomarmos qualquer decisão o que fazemos na prática é utilizarmos da nossa intuição, imaginação e razão para optar e, somada a isso, temos nossa própria experiência de vida, nossa jurisprudência, por assim dizer; um leque de escolhas passadas que já fizemos e avaliamos, que servem de base para nossas escolhas futuras .

Em outras palavras, não podemos voltar no tempo para avaliar uma determinada decisão com relação a outras opções que tomaríamos nessa mesma decisão; mas podemos sim buscar um passado de decisões para projetar um futuro que nos ajude a optar e, tendo optado, saber se uma decisão foi certa avaliando seus efeitos.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Quebrando o tabu abraçando Kant e Sartre


“Declarar guerra às drogas é declarar guerra às pessoas”. A fala de Ruth Dreifuss, presidente da confederação da Suíça em 1999, no recente documentário Quebrando o Tabu, resume o principal motivo pelo qual a chamada guerra às drogas, iniciada pelos EUA em 1971, não deu certo. Qualquer política de guerra e repressão já implementada cujo objetivo seja resolver o complexo problema das drogas, em diversos países, resultou numa relação custo/benefício baixa; muitos investimentos e violência para poucos resultados.

Diante dessa realidade, estão em marcha, já em nossa década, diversos movimentos que, seja lutando pela legalização da maconha, seja protestando pela descriminalização do usuário de drogas em geral, têm como fundamento uma conclusão que a cada dia fica mais difícil se ser refutada, até mesmo por quem há pouco tempo atrás marcava presença no front de batalha: a guerra às drogas fracassou e precisamos de alternativas.

Já muito interessado por esse assunto, assim que apareceu na timeline de meu perfil no Facebook que esse documentário poderia ser visto de graça através do site do Terra, repassei a notícia e corri para assisti-lo. Produzido por Luciano Huck e tendo como protagonista o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso,  Quebrando o Tabu me surpreendeu. Tal surpreendimento veio não simplesmente porque o documentário falava o que eu queria ouvir (afinal, eu já sabia do que se tratava e já compartilhava de muitas das opiniões do documentário), mas sim porque ele me disse mais do que eu queria ouvir: além de muito bem produzido, o filme foi munido de bons argumentos e ampliou o meu entendimento a respeito da questão. Sempre cuidadoso e pragmático, Quebrando o Tabu busca explicações e alternativas sensatas, aplicáveis, baseadas em experiências concretas de vários países e depoimentos de quem já não leva a questão como tabu. Mais do que isso, pensa em soluções que não caem na bipolaridade ingênua do “vamos repreender total” contra o “vamos liberar geral”.

Nesse texto, não falarei muito mais sobre o documentário, afinal, ele é recente e recomendo ao leitor que o assista. Não quero adiantar muita coisa e acabar por estragá-lo. O que é preciso saber do documentário daqui para frente é que ele não propõe uma solução definitiva para o problema das drogas, todavia, é importante que as alternativas propostas tenham como fundo não a guerra, mas sim a paz. O filme apresenta boas alternativas já realizadas em países como a Holanda e a Suiça. Além disso, existe algo no documentário que, a meu ver, é fundamental para todas as alternativas propostas: uma aposta na noção de sujeito moderno e liberdade.

Em meados do século XVIII Kant nos deu o modelo de subjetividade moderna com o sujeito transcendental, que é o sujeito racional, consciente e responsável pelos seus atos. Apesar das críticas à metafísica na filosofia contemporânea, não abandonamos essa noção de sujeito. No direito, por exemplo, devemos considerar que cada um de nós é dotado de racionalidade e, consciente de nossos atos, devemos nos responsabilizar por cada um deles. Se assim não fosse, nunca poderíamos ser condenados por crime algum visto que, ao assaltar um banco, por exemplo, sempre poderíamos argumentar que não somos conscientes daquilo que fazemos.

Essa noção de responsabilidade aliada ao sujeito também pode ser vista, de um aspecto um pouco diferente, em Sartre, quando a filosofia pós-kantiana busca resolver a questão da relação entre sujeito e objeto. O projeto sartriano, por se manter fiel a uma parcela da fenomenologia de Husserl (a de que a consciência não é um ser, mas sim um movimento, dotado de intencionalidade), concebeu que a consciência é nada, ou seja, não possui uma essência, mas é sempre um projeto, um movimento em direção ao ser. Isso significa dizer que nós, seres humanos, não possuímos uma essência que nos diga quem somos; ao invés disso, somos um projeto sempre inacabado, um “para si”, um movimento. Antes existimos do que somos e, por isso, sua filosofia é chamada de existencialismo. O ser humano, então, existe e, ao longo da sua vida, vai construindo sua essência a partir de um movimento, um “para si” que o coloca sempre em busca do ser. Mas que movimento é esse? A liberdade.

A liberdade para Sartre, então, é esse movimento em direção ao ser a que estamos condenados. Nossa liberdade é exercida sempre que, diante de uma escolha, temos que optar, decidir, e disso não podemos nos abster. Mesmo quando pensamos não decidir, o que estamos fazendo é decidir fugir da decisão. Justamente por isso, não podemos também abdicar da responsabilidade sobre nossas decisões. Mas e aí? Não existe repressão? Não existe uma limitação de opções imposta pela sociedade e pela moralidade, por exemplo? Existe. Todavia, ainda assim podemos decidir nos livrarmos das amarras exteriores e de maneira alguma responsabilizar a sociedade, as estruturas, o “sistema” ou o inconsciente por nossas decisões. Podemos ter diante de nós escolhas muito difíceis, mas ainda sim serão escolhas. Para Sartre, o importante não é o que fazem de nós, mas sim “aquilo que fazemos com o que fizeram de nós”.

Tendo tanto a noção de sujeito em Kant, como também a noção de liberdade em Sartre, em mãos, chegamos à conclusão de que, sendo seres dotados de razão, sempre teremos que optar e podemos, apesar de tudo, fazer boas opções quando elas nos são dadas. É aqui que o documentário Quebrando o Tabu, ao meu ver, aposta suas fichas. Criar políticas de proibição total de uso às drogas significa apelar para uma essência humana que é errante. Significa dizer: “já que o ser humano inevitavelmente usa drogas, a solução é proibir de vez, extinguir as opções”. Essa solução, com relação às drogas, não funcionou. Sendo assim, a pergunta de um entrevistado no documentário é boa: "Se não conseguimos acabar com as drogas dentro de uma prisão de segurança máxima, como podemos acabar com elas é uma sociedade livre?". E a resposta talvez seja: permitindo e ampliando próprio exercício da liberdade.

Por que, ao invés de guerra, não podemos fazer como na Holanda e Suiça, e dar um voto de confiança na racionalidade das pessoas quando oferecemos para elas opções melhores? Ao invés de tentar zerar as opções, proibindo as drogas, e fazendo com que a pessoa opte por compra-la ilegalmente, por que não oferecer aos usuários opções mais seguras, reguladas e controladas, de maneira que eles possam optar usar drogas sem ferir a liberdade alheia e de maneira legal? Não é isso que fazemos com o cigarro e estamos começando a fazer com o álcool, drogas que, em determinada perspectivas, são mais nocivas ao individuo, ou mesmo socialmente, do que a maconha, por exemplo? Ao invés de proibir, não podemos informar e educar, de maneira a deixar a opção de usar, ou não usar, drogas, para o individuo, regrando o uso como fazemos para o cigarro? Não obteríamos um melhor controle social caso, através das leis e políticas, regrássemos a produção, distribuição e uso de drogas, ao invés de simplesmente proibi-las, deixando com que o traficante crie suas próprias regras? Por que considerar o usuário um criminoso quando  ser considerado um doente em outros países tem trazido melhores resultados? 

Todas essas são perguntas e alternativas que em determinados contextos tem trazido bons resultados e funcionam justamente porque apostam na racionalidade e na liberdade das pessoas, buscando ampliar as opções que o individuo tem, deixando-o optar ao invés de restringir-lhe as opções. A solução, portanto, talvez não seja tratar as pessoas como se estivessem num presidio de segurança máxima, cerceando suas opções, mas sim ampliando as opções disponíveis e permitindo que elas exerçam o que lhes é próprio: a liberdade e a racionalidade.

Sendo racionais e podendo ponderar quais são as melhores opções quando as temos em mãos, parte significativa dos indivíduos ou tem optado por não utilizar drogas, mesmo que estas estejam disponíveis legalmente (por causa da educação e informação de que as drogas são nocivas), ou optado por utiliza-las, mas dentro dos limites da lei, que restringem o uso a determinada idade, local, quantidade e etc, visto que essa é, na maioria das vezes, a melhor opção para ele.

Alguns podem argumentar que apostar nessas fichas em nosso país, onde a educação é uma lástima, é perigoso. Pode ser, mas a flecha foi atirada e não tem volta. O documentário de FHC, depois de vários documentários e marchas a respeito da descriminalização da maconha, e mesmo sua legalização, é um sinal claro disso.  Estamos chegando ao ponto de decisão onde teremos que exercer nossa liberdade e escolher se ficamos com a guerra às drogas (o que por jurisprudência tem nos mostrado que é uma péssima opção), ou buscamos outras soluções. Não podemos mais escapar dessa decisão. Essa é nossa condenação.

sábado, 10 de setembro de 2011

O agnóstico teísta e o ateu agnóstico

Não faz muito tempo que uma parcela significativa de jovens que conheço começaram a responder às perguntas como “Qual a sua religião? Você acredita em Deus?” da seguinte maneira: não tenho religião, sou agnóstico. Com isso, queríamos dizer duas coisas: ou que acredito em Deus mas não sigo uma doutrina, ou que sou incapaz de dizer se Deus existe ou não. Essas duas formas de se utilizar do termo agnóstico são mais ou menos corretas. Digo isso porque elas podem ser  de uma pessoa cuja posição é o agnosticismo, todavia, a primeira não é uma característica necessária do agnóstico, e a segunda nada diz sobre a posição teológica do questionado. Explico melhor adiante.

Em busca de uma exposição a respeito da relação entre crença e ateísmo (O ateísmo é uma crença?), encontrei uma série de bons trabalhos, incluindo um ótimo texto, bem argumentado, que me mostrou não só que o ateísmo é antes uma não-crença que uma crença, como também circunscreve uma definição de ateísmo relacionado à crença. Farei um resumo aqui da maneira mais simples possível.

Desde Platão, a noção de conhecimento ficou conhecida como uma “crença verdadeira e justificada”. Isso significa que para dizermos que acreditamos numa coisa, basta tendermos a aceitar aquela coisa como verdade; porém, para dizer que sabemos algo, ou seja, que conhecemos, essa nossa crença deve ser justificada. Com o advento da lógica aristotélica, foi possível relacionar as crenças não com coisas, mas sim com proposições (pensamento expresso na forma declarativa, afirmações na forma de sujeito e predicado).

Sendo assim, se eu digo “A chuva é fria”, temos aí uma proposição, algo que declara antes um pensamento meu que a realidade em si da chuva. A crença é “estado mental disposicional, que tem como conteúdo uma proposição, verdadeira ou falsa”. Ou seja, além de conter uma proposição (uma expressão declarativa de um pensamento) a crença é disposicional (uma disposição a aceitar como verdade uma proposição).

Nesse contexto, o ateísmo, no fim das contas, se mostra antes uma rejeição da proposição “Deus existe”, do que a disposição a aceitar como verdade (crença) a proposição “Deus não existe”. Em outras palavras, o que define o ateísmo é simplesmente a não crença em divindades, sendo que isso não necessariamente implica na crença na não existência de divindades. Isso é um tanto complicado de se entender a principio. A divisão entre ateus fracos e fortes, criada e utilizada por alguns autores ateístas, nos ajuda a esclarecer a questão.

O ateu forte seria aquele que além de rejeitar a proposição “Deus existe”, aceita a proposição “Deus não existe”. Ou seja, esse é um ateu que crê na não existência de Deus, justificando tal crença através da falta de evidências, por exemplo. Para ele, a ausência de evidências é a evidência da ausência. O ateu forte parece ser minoria entre os ateus. Para ser ateu, basta ser um ateu fraco.

O ateu fraco é aquele que simplesmente não acredita na existência de Deus, tem uma não-crença e rejeita a proposição “Deus existe”; porém, se colocarmos perante ele a proposição “Deus não existe”, ele também irá rejeitá-la. Alguns ficarão confusos aqui. Como ele pode rejeitar que Deus existe e Deus não existe? Rejeitar uma não implica em aceitar a outra? Não. Isso porque, novamente, a crença se relaciona com proposições e não com coisas.

Se alguém diz para mim “Seu primo é gordo” e eu rejeito, e esse mesmo alguém diz “Então, seu primo é magro”, eu posso rejeitar também porque, afinal de contas, eu posso não conhecer meu primo. Isso não significa que meu primo não existe. Ele pode existir e ser gordo, mas como não o conheço, nada posso afirmar de conhecimento sobre ele.

Para ser ateu, então, basta rejeitar a proposição “Deus existe” (pode-se falar também em rejeitar a existência divindades). Para além disso, caso alguém aceite a proposição “Deus não existe”, esse será um ateu forte, mas caso rejeite qualquer outra proposição sobre Deus, será um ateu fraco. Portanto, o ateu fraco é aquele que nada afirma sobre Deus, enquanto o ateu forte crê na não existência de Deus.

Mas, o ateu fraco não é o agnóstico? Não necessariamente. O que difere aqui é o referencial da posição. Teísta e ateísta são posições teológicas, enquanto o agnosticismo é uma posição epistemológica (do conhecimento). Ou seja, teologicamente falando, ou você é ateu ou não é. Não existe um meio termo aí chamado “agnóstico”.

O agnóstico, do ponto de vista do conhecimento, crê que a razão é incapaz de conhecer as divindades. Isso torna a resposta “agnóstico” insuficiente para a pergunta “Você acredita em Deus?”, pois o agnóstico pode tanto ser teísta, como um ateu fraco. Um agnóstico crê que nossa razão é incapaz de conhecer Deus, por isso, ele pode tanto encontrar motivos para crer em Deus pela fé (teísta), como pode, crendo que nossa razão não pode conhecer Deus, nada afirmar sobre ele, rejeitando qualquer proposição a respeito de Deus e achando a fé insuficiente para sustentar sua crença (ateu fraco).

Trocando em miúdos, eu diria que se você não está nem aí para Deus e sua existência, como não está nem aí para o Papai Noel, sem abrir mão de que se um dia ele aparecer você o aceite, você é ateu. Ser agnóstico aqui apenas significa que essa ideia de Deus fica em suspeita. Pode até ser que ele exista, mas pode ser também que não seja possível conhecê-lo e, portanto, como creio no que posso conhecer, rejeito a proposição "Deus existe". Porém, pode-se ser um agnóstico que crê em Deus: isso significa que eu dispensaria a razão como forma de conhecer Deus, mas Deus poderia ser conhecido pela Fé, como Pascal diria, por exemplo.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Chico Buarque e o amor não correspondido

Quando se fala em Chico Buarque, há aqueles que reverenciam antes o Chico “político”, do protesto contra ditatura militar, do que qualquer outro Chico. Digo isso porque quando falamos no carioca dos olhos azuis que fez tanto sucesso com Roda Gigante, podemos falar em um músico que não foi um só. A compilação 50 anos de Chico Buarque nos mostra isso quando divide, com perspicácia, a obra do músico em cinco cd’s: o trovador, o político, o cronista, o malandro e o amante.

Não posso deixar de atribuir certa genialidade a qualquer um desses cinco Chicos. Todavia, se me perguntarem com qual me identifico mais, direi que é o Chico que fala de amor. Mas não é qualquer amor. Não é nem philia, nem ágape. Não é, por exemplo, o Chico Buarque do Meu guri, que fala, entre outras coisas, de um amor maternal incondicional a ponto da cegueira; mas sim o Chico amante, que fala de eros, do amor romântico. Nesse tema, o músico carioca é capaz tanto de fazer poesias românticas de reverencia a uma amante, por exemplo, quanto falar de amores não correspondidos.

Uma das músicas que tratarei aqui no texto infelizmente não faz parte da coletânea anteriormente citada. Chama-se Futuros Amantes e é uma canção sobre um amor não correspondido. Apesar do carioca de olhos azuis fazer sucesso com as mulheres até hoje, defendo que somente tendo amores não correspondidos que o filho do Sérgio Buarque de Holanda seria capaz de realizar interpretações como Quem te viu quem te vê e Olhos nos olhos. São canções sobre eu-líricos que foram deixados, rejeitados pela pessoa amada. Somente quem um dia nessa vida passou por uma rejeição dessas é capaz de se identificar tanto com essas músicas, e não há nada de errado nisso. Penso que em grande parte das separações há aquele que não ama mais e pede a separação, e há aquele que ainda ama, mas finge que não ama para “sair por cima” (uma grande bobagem que fazemos tipo “quem termina primeiro” mostra isso, como se doesse menos ainda amar e terminar primeiro). Essas são canções onde a pessoa deixada deseja que a outra a contemple no futuro mais próximo possível, seja para a outra ver como ela, a deixada, está feliz sem a outra, seja para que a outra não dê na vista a saudade que pode surgir da deixada.

Futuros amantes é também sobre um amor não correspondido, mas não propriamente sobre um futuro próximo à rejeição, onde teremos que lidar com o fato de que a pessoa pela qual nos apaixonamos não nos quer, nos deixou e queremos que ela nos veja sem ela. Essa canção é sobre um futuro distante, onde o amor não correspondido pode ainda se realizar. A música que se passa em um Rio de Janeiro submerso, distante no tempo. Lá, os mergulhadores que exploram a cidade submersa descobrem fragmentos de cartas e poemas, fragmentos do amor deixado pelo eu-lírico. Mesmo que esse amor não tenha sido correspondido no passado, o que importa é como ele será ressignificado no futuro.

A história construída pela civilização futura a partir desses fragmentos poderá fechar o ciclo desse amor. Os escafandristas (mergulhadores em suas roupas especiais) levarão tais fragmentos à superfície e lá eles serão lidos, estudados e interpretados de diversas formas. Poderão, inclusive, serem ressignificados de maneira que a partir desses fragmentos os futuros homens darão sentido a esse amor. Outros amantes se utilizarão dele e, independente do fato de ele não ter se realizado no passado, cumprirá sua função no futuro, se realizando como amor.

Uma das maneiras de lidarmos com o medo da certeza de nossa morte é nos utilizando de narrativas onde a vida continua após a morte, onde nosso espírito é imortal. Penso que Futuros Amantes seja uma música que dá ao amor um aspecto imortal, e é justamente essa a beleza de um amor que não pode morrer. Mesmo que ele já tenha nascido e morrido, ele poderá ressuscitar num futuro distante. Quer melhor terapia para um amor morto do que saber que ele sempre terá a possibilidade de se realizar? Aqui vai um trecho da música para aqueles que sinceramente amam, ou amaram, e não foram correspondidos:

Não se afobe, não
Que nada é pra já
O amor não tem pressa
Ele pode esperar em silêncio
Num fundo de armário
Na posta-restante
Milênios, milênios
No ar