sábado, 23 de abril de 2011

Confundindo os três amores

Costumamos falar em amor sem muitas especificações. Falamos do amor de pais para filho, do amor entre amigos e do amor de casais sem muitas diferenciações. “É tudo amor”. Entretanto, mesmo que não queiramos, sempre que falamos em amor estamos fazendo referência a três noções muito antigas de amor. Duas delas são da antiga Grécia: eros e philia. A outra é cristã, a noção de ágape. Esses três amores não são a mesma coisa, por mais que por vezes se relacionem. Justamente por não serem a mesma coisa é que a confusão entre eles, por vezes, nos trazem problemas. Com definições bem grosseiras desses três amores, já podemos observar que problemas são esses.

A noção de Eros diz respeito ao amor romântico, de casais. Esse amor tem a ver com o erótico, com o desejo, com o sexo e, como diz o filósofo Paulo Ghiraldelli Jr., com o ciúmes que envolve a posse do outro. Sem desejo sexual e ciúmes que envolve a posse do outro, não há eros. Já a noção de philia, que também advém da antiga Grécia, trata sobre o amor entre amigos, a amizade. Aristóteles, em Ética a Nicômaco, nos da uma boa noção de amizade, que é o desejar o outro bem, a reciprocidade de interesses e fidelidade. A amizade é uma virtude nobre. Agora, em um contexto histórico posterior, do cristianismo, surge o amor ágape, que podemos localizar de maneira emblemática na figura de Jesus. O amor ágape é o amor desinteressado, o amor pelo próximo e até mesmo pelos inimigos, o amor da solidariedade.

Aqui já podemos ver que tipo de confusões vão começar a surgir quando confundimos os três amores. Podemos fazer confusão, por exemplo, entre eros e philia. Ora, os casais também demandam certos traços da amizade como querer o outro bem e a fidelidade, mas, mesmo assim, pensar o amor de casais como amizade pode nos levar a uma certa frigidez destrutiva pois não há casal que sobreviva sem eros. Sem desejo sexual e ciúme de posse pode haver de tudo entre duas pessoas, menos eros. Se a dimensão erótica já sumiu entre um casal, por mais que eles permaneçam casados e ainda haja traços de amizade entre eles, o amor romântico não existe mais. Na confusão inversa, por vezes se quer tomar eros por philia. Seja por falta de conhecimento de si mesmo, seja por pressão de valores morais, muitas pessoas se apaixonam pelo amigo, até mesmo de igual sexo, e tomam aquilo como “só amizade” ou uma amizade forte. Se há desejo sexual e ciúmes de posse, não é philia. Isso vale tanto para pessoas de sexo diferente como pessoas de mesmo sexo.

Visto essas duas confusões que podem surgir entre as duas noções gregas de amor, agora podemos falar da maior confusão de todas: a confusão entre ágape e as noções gregas. O grande problema aqui é que a noção de amor cristã é desinteressada e eros e philia são interessadas. Eros quer o prazer que surge da relação com o outro e philia exige a reciprocidade típica da amizade, por isso são amores interessados. É nesse contexto que ágape vira desculpa para os problemas de eros e philia e faz exigências. Um amigo trai a fidelidade do outro e, portanto, destruiu a amizade, mostrou que philia não existia entre os dois. Uma justificativa que o “amigo” traidor pode dar é: “mas se você é mesmo meu amigo e me ama, vai me perdoar”. A exigência do “amigo” é que a philia seja reparada pelo amor ágape. Apesar de sua infidelidade, o “amigo” utiliza a noção de ágape para exigir philia.

Algo de mesma proporção ocorre entre os casais: “eu te traí, mas se você me ama mesmo, vai me perdoar, porque quem ama perdoa”. Mais uma vez, ágape exigindo eros. Outro caso emblemático que nos mostra uma confusão entre eros e ágape é o de pessoas que, naturalizando a própria feiura, acham que as outras devem “amá-la pelo que ela é”, mesmo que “o que ela é” seja uma pessoa antipática, que não toma banho e não escova os dentes. Ou seja, essa pessoa que não desperta o desejo erótico nas outras, seja porque não se cuida, seja porque tem uma personalidade nada agradável, utiliza ágape para achar que as outras devem ter amor desinteressado por ela. Ninguém fica com, ou namora, outra pessoa por piedade, com desinteresses. Ninguém beija outra pessoa na boca simplesmente por solidariedade.

Podemos até falar em ágape se tratando de atos de solidariedade (será mesmo? Eu tenho sempre um pé atrás com ágape), mas quando falamos de amizade e namoro, ágape só traz problemas, grandes problemas. Mesmo assim, creio que ágape ainda pode permitir que, no movimento trágico da traição para o perdão, alguns amores eros e philia sejam “recuperados”, ou melhor dizendo, nasçam novamente entre duas pessoas.

sábado, 16 de abril de 2011

Paula Toller (Kid Abelha), muçulmanos e o espaço público

Nessa altura do campeonato é incrível termos celebridades que ainda não aprenderam que a internet é espaço público, muito menos as implicações dessa relação. No ano passado, uma declaração de Rita Lee no Twitter teve uma repercussão tão negativa que a cantora excluiu a própria conta na rede social. Rita Lee dissera, querendo criticar a proposta de local do novo estádio do Corinthians na época, que “o Itaquera é o c* de onde sai a bosta do cavalo do bandido”. Com bons motivos, moradores do Itaquera não gostaram nada dessa afirmação.

Agora, há poucos dias do show do grupo Kid Abelha na cidade de Foz do Iguaçu-PR, onde se localiza uma das maiores colônias de muçulmanos do país, a cantora da banda, Paula Toller, resolveu fazer uma “brincadeirinha” envolvendo a cidade em seu Twitter (@PaulaToller): “Triplice fronteira sinistra, dizem q Bin Laden mora aqui e ninguem repara, pq todo mundo se parece com ele”.

Como repercussão, diversos moradores da cidade responderam Toller no Twitter, indignados com a “brincadeira” da cantora. Para abafar a situação, a vocalista do Kid Abelha então respondeu: “Nao era para levar a serio, foi apenas uma brincadeira. Vamos rir um pouco, gente, a vida e curta e vcs moram num lugar deslumbrante”.

Nada disso teria acontecido nem com Rita Lee, nem com Paula Toller, se, sendo celebridades, personalidades públicas, elas tivessem noção de duas coisas: pragmática e espaço público. Começaremos pela noção de espaço público.

Podemos levantar vários sentidos para a noção de espaço público. Até mesmo podemos confundir essa noção com quando falamos em prédio público, por exemplo. Mas, talvez, a melhor concepção de espaço público que podemos elencar para pensar o caso Paula Toller é aquela que tem relação com a praça pública, noção que deriva da pólis grega, onde os cidadãos, pessoas privadas, se reuniam para discutir os assuntos públicos. A praça pública não se limita a um lugar físico. Por isso mesmo, muitos concebem os meios de comunicação de massa, como a TV, por exemplo, como espaço público. Sabemos muito bem disso quando dizemos que, estando em rede nacional, não se pode falar qualquer bobagem (em teoria!).

Cada pessoa privada é responsável por aquilo que diz no espaço público. Como se pode pensar a TV como espaço público, a internet, apesar de ser um espaço virtual, também se encaixa nessa noção. Aliás, ela se encaixa melhor que a própria TV, afinal, sendo muito mais interativa que os outros meios de comunicação, todos que tem acesso a ela podem meter a boca no trombone caso queiram. Podem criar blogs opinativos, comentar notícias, participar de fóruns de discussão e etc.

Justamente por isso que, se a nossa responsabilidade como cidadãos já é grande quando falamos na internet, a responsabilidade das celebridades, personalidades públicas, parece ser muito maior. No Twitter, por exemplo, é mais do que recomendado para uma personalidade pública pensar muito bem antes de falar qualquer coisa. Brincadeiras? Mais ainda. Por mais que Paula Toller tivesse a pura intenção apenas de brincar e Rita Lee quisesse apenas criticar o Corinthians, e não os moradores do Itaquera, isso não importa perante o espaço público. Dito uma coisa no espaço público, aquele que falou é responsável por todos os sentidos possíveis que podem ser atribuídos à própria fala dentro do contexto em que essa fala foi dita.

A pragmática, como perspectiva de estudo da linguagem nos atenta para isso em dois pontos. O primeiro aprendemos com Austin: falar é agir. Não existe o falar passivo. Toda fala é uma intervenção na realidade, um ato. Uma brincadeira é uma brincadeira, mas ela nunca é “só” uma brincadeira. A outra coisa que aprendemos com a pragmática é que o contexto de fala é fundamental para os sentidos atribuídos a essa fala e que não existe significado único, imanente, de uma frase, por mais inocente que possa ser a intenção do falante.

Se Rita Lee soubesse bem dessas coisas, que o Twitter é espaço público e, portanto, ela, como personalidade pública, tinha um grande peso de responsabilidade pelo que falava ali, não teria dito o que disse. Isso também vale para Paula Toller que, além de não parecer entender a noção de Twitter como espaço público, quis se justificar dizendo que era “só” uma brincadeira. A vocalista do Kid Abelha deveria ter levado em consideração o contexto atual: a revista Veja está sendo processada justamente por publicar acusações de terrorismo em Foz do Iguaçu envolvendo muçulmanos que moram na cidade. Sem dizer que a fala da cantora foi uma brincadeira que envolveu raças, o que facilmente podem-lhe atribuir um significado racista.

No fim das contas, assim como o próprio público mostrou à Rita Lee que o Twitter não é “terra de ninguém”, o que fez com que ela excluísse a própria conta da rede social, o mesmo impulsionou Paula Toller a apagar seus mal recebidos tweets.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

TV não emburrece

Quando vamos parar de culpar a TV pela nossa burrice? O discurso de que a TV emburrece, de que as novelas e o BBB “alienam” (quem diz isso realmente leu Marx ou mesmo Adorno?), já é um discurso ultrapassado. Sei que meus colegas de comunicação já cansaram de ouvir isso, mas, como meu blog tem outros públicos, essa discussão merece espaço. Pior do que ultrapassado, esse é um discurso que, não raro, assume suas formas autoritárias, coisa que numa democracia é inaceitável. Vejamos, com paciência, de onde esse discurso pode ter vindo e porque ele merece as devidas críticas.

Para começar, tenho minhas suspeitas de que esse discurso é uma ressonância dos estudos sobre a indústria cultural da primeira metade do século passado. Adorno, da escola de Frankfurt, deu um grande peso à noção de indústria cultural e, com isso, condenou todos os meios de comunicação como reprodutores de ideologia (entendida como ilusão que inverte a realidade e mascara a exploração do trabalhador, alienando-o do fruto de seu trabalho). Não raro, o pensamento de Adorno é criticado como elitista. Afinal, para ele, somente a “alta cultura” poderia nos salvar da ideologia. Ora, na mesma “escola” (parece que os Frankfurtianos são unidos só pelo nome) de Adorno, Walter Benjamim nos mostrou um caminho diferente. Mostrou-nos que o cinema tinha seu poder revolucionário.

Mais tarde, Habermas nos mostraria que o pensamento de Adorno merecia uma crítica que recairia nos fundamentos epistemológicos de seu pensamento. Adorno pensou de acordo com a noção de sujeito moderno, que pensa sozinho, é autônomo e com o cogito, chega sozinho à verdade. Ora, mas a razão monológica (de uma só pessoa), nos apontaria Habermas, tende para o autoritarismo: uma só pessoa pensa e impõe a verdade às outras. É nesse contexto que Habermas introduz a noção de razão comunicativa, intersubjetiva. O que é isso? Isso é a racionalidade que se constrói entre sujeitos, através do diálogo e do consenso. Uma razão dialógica. Por que devemos nos sujeitar à racionalidade de uma pessoa, uma autoridade, sendo que podemos exercer a razão juntos, conversando? Aqui, a ideia da indústria cultural, e da TV alienadora, cai por terra porque no mundo da vida podemos, através de nossas conversas, questionar tudo que vem das “estruturas”, da TV e etc. Isso significa dizer que a TV não transmite para mentes isoladas que estão sujeitas a essa mensagem como receptáculos passivos.

Outros estudos mais recentes, como os estudos do interacionismo simbólico, teoria da recepção, apontam que essa coisa de “Tv alienadora” é uma bobagem, dado que o receptor pode ter um papel ativo na ressignificação da mensagem. Pode mesmo negá-la, como muitos de nós fazemos quando dizemos que a TV está mentindo. O que acontece é que o bom senso de ontem, que foi Adorno, se transformou, descontextualizado, no senso comum de hoje. Tem muita gente repetindo Adorno, descontextualizado, sem saber.

Mas, afinal, no que os pregadores da “TV como emburrecedora” acreditam? Acreditam que o Brasil seria um país melhor se a TV possuísse programas de melhor qualidade, se os BBB’s e as novelas da Rede Globo fossem banidas das programações. Ora, mas quem disse que as ressignificações (os sentidos que damos pras mensagens da tv) são uniformes? Pessoas de boa formação podem assistir TV e continuam inteligentes. Acontece que a boa formação, a boa educação, amplia a nossa percepção, de maneira que temos maior condição de refletir sobre aquilo que vemos. A pessoa inteligente, se gosta do BBB, o vê com o olhar produtivo. A questão não é gostar ou desgostar da TV, mas sim ter a capacidade de ver a TV de forma inteligente. E os inteligentes, muitas vezes, não deixam de observar nem a cultura popular e nem a de massa, como Gramsci, por exemplo.

O pessoal anti-TV acredita também que, melhor do que dialogar e repensar o problema, é impor que as pessoas não devam gostar de novelas e BBB. Enfim, impõe que os outros não devam gostar de TV. Aí, seu pensamento vira autoritário e ele se transforma num verdadeiro pregador, querendo ditar o gosto alheio. Gostar ou não gostar de TV e seus programas é não só um direito das pessoas, como diz muito menos sobre a inteligência delas do que se acredita. Isso o pregador não entende.

Aqui, o pregador poderia questionar: “mas você está tomando como pressuposto que todas as pessoas são inteligentes. Como a maioria dos brasileiros é burro, então o que você falou não vale”. E aí, ele caiu na própria armadilha. Se for verdade que a maioria dos brasileiros é burro (verdade do pregador), então, o que temos no país não é um problema de TV, mas sim um problema de educação. E como se resolve primordialmente um problema de educação? Pela TV? Não! Pela educação, oras. Pensando-se em boas políticas de educação, remunerando melhor os professores do ensino médio e fundamental para que a área se torne mais competitiva, dando atenção às reformas do ensino fundamental e médio. Em suma, promovendo uma mudança radical (pela raiz), na educação brasileira, afinal, nosso ensino fundamental, e médio, está precário.

Melhorando-se a educação, formando-se bons cidadãos, estes terão a percepção de mundo ampliada e poderão ver não só a TV, como o resto do mundo, de maneira construtiva, positiva. A teoria da recepção nos mostra isso: não se dá significados iguais às mensagens da TV, por exemplo. Esses significados dependem das estruturas de sentido do receptor. Se isso é verdade, a educação tem o poder de ampliar essas estruturas de sentido, fazendo com que o receptor ressignifique as novelas, ou o BBB, de forma inteligente.

Pensando utopicamente num país onde a educação é exemplar, esse será um país onde a pessoa terá o direito de gostar ou desgostar de novelas, ou BBB, sem ser taxado como burro. Será um país onde as pessoas podem assistir filmes hollywoodianos para descansar sem serem julgadas pelo crivo da erudição. Será um país onde, pelas pessoas terem boa formação, poderão exigir, caso assim queiram, dos produtores da TV, programas mais elaborados, criando uma demanda de qualidade que os produtores não poderão ignorar.

Culpar a TV pela má educação no Brasil é uma grande bobagem, é se desviar do problema central que é a própria educação. Talvez se parássemos de apontar o dedo indicador pra TV e começássemos a apontar para nós mesmos e nossas políticas educacionais, a coisa poderia começar a mudar.

PS: Eu conheço os estudos sobre a questão da concentração de crianças que veem muita TV, mas isso não tem a ver com minha provocação. A minha questão é cultural e tem mais a ver com o conteúdo da TV. Novela emburrece? Só burro acha isso. Novela é folhetim televisionado. É uma questão de educação saber apreciar uma novela como quem aprecia um folhetim.