sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Trombada Metafísica

Certo dia, perambulando pelo infinito, quem sabe passeando numa calçada calma do plano metafísico, a Justiça e a Natureza se trombaram feio.

- Cacete! Não olha por onde anda, não? – reclamou a Natureza

Um tanto boquiaberta, a Justiça fez uma réplica:

- Na realidade, não. Caso vossa senhoria não tenha notado, eu uso uma venda e, por isso, não olho por onde ando. E que falta de educação, hein?! Eu mereço tudo isso por um simples tropeço? Eu não enxergo.

- Você usa uma venda?! – disse a natureza seguida de uma gargalhada sarcástica- Essa é boa! Melhor desculpa do ano. Além de esbarrar em mim, aposto que por desatenção, fica fazendo brincadeiras com esse linguajar pomposo. “Vossa senhoria”... ora essa! A cega aqui sou eu.

- Vossa senhoria é cega? – replicou a Justiça com ar de sinceridade - Desculpe-me! Não sei como julgar o devido ocorrido. Creio que nenhuma de nós tem culpa sobre esse caso, já que ambas não enxergamos. Vou ter que consultar a jurisprudência metafísica para isso. Mas, em todo caso, garanto-lhe, estou usando uma venda e por isso não enxergo.

- Sei... – resmungou a Natureza

- Juro!

A Natureza deu mais um resmungo e demorou a responder. Ergueu uma sombracelha e passou os dedos pelo queixo, acariciando o maxilar de maneira pensativa. Finalmente, chegou a uma resolução:

- Tá bom. Eu lhe perdoo. Mas... posso saber por que diabos usa uma venda se não é cega?

- Ora, não me conheçe? Eu sou a única que usa venda por aqui. Meu nome é Justiça. Levo comigo uma espada e uma balança também.

- Uau! – exclamou a Natureza, não muito surpreendida - quando eu achava que sair de venda pelo infinito já era idiota o bastante, você me vem com mais uma balança e uma espada. Andando de venda e espada por aí, vai acabar furando alguém. Eu me chamo Natureza.

- Vossa senhoria é deveras sem graça! E sobre a balança, não tem nenhuma ironia, nenhuma “piadinha”?

- Não. A balança por si só é uma piada e não quero arruiná-la. Agora, chega de lero lero. Quero saber por que, além do fato de ser meio biruta, você usa uma venda? – A Natureza estava realmente intrigada com aquilo.

- Um grande filósofo uma vez disse... – nesse momento a Natureza bufou, interrompendo – Posso falar? – Disse a Justiça, e continuou - Um grande filósofo disse que eu dou a cada um o que lhes é devido. Para ser quem sou, não posso ver aqueles a quem julgo, pois corro o risco de beneficiar alguém para além da balança. Devo somente pesar o que deve ser pesado e dar o que é devido a cada um de maneira que a balança se equilibre. É isso que faço no plano terreno.

A Natureza fez cara de tédio e respondeu:

- E você dá ouvido aos filósofos? Eu quero mais que eles se danem, faço o que quero. Além disso, é por isso que usa venda? Por causa dessa historinha de “quem vê cara não vê coração”? Hahaha. Dá aqui essa espada que já vou lhe dar uma lição!

- Como vossa senhoria é prepotente! – exclamou a Justiça - Mas, me conte, como perdeu a visão?

- Nasci assim. E não me faça perguntas idiotas do tipo “como você nasceu”? Você lembra do seu nascimento?

- Não, mas me contaram esses di...

- Então, idiota! – a Natureza interrompeu - Eu não lembro de nada. Só sei que sempre fui assim. Além disso, faço o que me der na telha no plano terrestre.

A Justiça se espantou. “Quanta liberdade!”, pensou ela. Muito curiosa, continuou a indagar a Natureza:

-Conte-me mais! Como funciona exatamente esse negócio de “fazer o que dá na telha” lá na Terra? – questionou a Justiça

- Bem, tem algumas regrinhas, na verdade. Coisa de probabilística, sabe? Não sabe, né? Pois é uma jumenta de venda. Faço somente o que é possível, mas como tem muita coisa que posso fazer, eu digo que posso fazer tudo: árvore aqui, terremoto lá, filósofo acolá... Talvez um resfriado forte para o filósofo. Coisa básica. Mas tem um problema...

- Qual?

- Não adivinhou ainda? Mas é uma anta mesmo. Eu sou cega!

- Não entendi a relação – disse a Justiça

- E daí que eu posso fazer tudo mas, como não enxergo, não sei muito bem o que estou fazendo. Ou você acha que haveria filósofos se eu conseguisse ver o que faço? Poetas, então, puta que pariu! Não sei como fui criar aquilo. Pensando bem, se eu pudesse enxergar, eu iria fazer todos eles só para depois poder lhes dar hemorróidas em vida!

A Justiça, então, riu para si mesma, deixando a Natureza perplexa:

- Tá rindo de quê?! – perguntou a Natureza, impaciente.

- É que agora me dei conta que vossa senhoria é cega e não pode ler os pensadores da Terra. Bem, de qualquer jeito você nem os ouve, como já havia me dito. Sei que existe um individuo materializado por vossa senhoria que, pelo que me parece, a descreveu mais ou menos desse jeito que me disseste agora. Alguma coisa a ver com evolucionismo, probabilidade e seleção.

- Se eu pudesse vê-lo, ele já estaria com hemorróidas agora.

- Isso seria injusto com ele – ponderou a Justiça - Estou sentindo minha balança desequilibrar. Eu dou a cada homem o que lhes é devido. Já vossa senhoria é aleatória, como o Acaso, também chamada de Sorte: dá qualquer coisa para qualquer um cegamente.

- Tá me chamando de vadia? – a Natureza perguntou secamente

- Não senhora. A Sorte, por obséquio, lá é moça de reputação dúbitável?

- O que você acha? De dia se chama Sorte, depois da meia-noite se chama Acaso. Conhece alguém de boa reputação que use um nome por turno?

- Não conheço muita gente. Minha melhora amiga é a Verdade, moça de boa reputação – disse a Justiça com orgulho

- Olhe lá, hein! Até eu que não dou ouvido a filósofos sei que a Verdade não é mais virgem faz tempo. Sou cega, mas não sou surda. Mas, deixe tudo isso prá lá. Quero te pedir uma coisa.

- Muito bem – disse a Justiça com bondade – o que quer?

- Eu sinto que vou fazer uma coisa na Terra agora. Deu-me na telha. Será que dá pra você tirar a venda um pouco e ver o que é? Nunca posso ver o que faço. Ficaria muito grata.

- Não, não posso fazer isso.

- Ah, vá lá! Deixe de ser tão chata. Só um pouco.

- Hum... Tudo bem.

A Natureza estendeu a mão e acenou com a cabeça. A Justiça, então, abriu uma fenda no chão em direção à Terra, tirou a venda e deu uma espiada.

- Bem, ao que me parece você criou uma pequena mina de diamantes no terreno da fazenda de um senhor. – Disse sem muita surpresa a Justiça.

- Só isso? Achei que criaria um ciclone daqueles!

- Sim. Agora o senhor achou os diamantes e está agradeçendo a Deus. Não sei quem é esse, você sabe?

- Não.

- Enfim, vejo que senhor dos diamantes está exclamando aos céus que foi muita sorte.

- Sabia que aquela vadia ia levar os créditos – a Natureza respondeu injuriada.

Após observar por mais um tempo o plano terreno, a Justiça deu um pequeno grito contido e pôs a venda rapidamente.

- O que houve?! – perguntou ansiosamente a Natureza.

- O senhor e o irmão dele estão brigando pelos diamantes. Ao que me parece, a terra era propriedade não do senhor que vivia lá e achou os diamantes, mas sim do irmão dele. Agora, devo dar a eles o que é devido a cada um. Devo pesar a balança e erguer a minha espada. Mas, pode ter certeza que, sendo cega como tu és, com algum desses seres terrenos vossa senhoria foi injusta.

Nisso, a Natureza respondeu:

- Eu não sou justa nem injusta, sou cega. Agora vá trabalhar que essa pica é sua!