segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

“Porque Jesus quis” é argumento, sim

Quando crenças religiosas podem adentrar discussões políticas?

Nós, que nos identificamos (a posteriori) com posicionamentos mais à esquerda no espectro político, temos certa mania de ironizar os religiosos com relação às discussões políticas. A discussão sobre o aborto é um grande exemplo disso. Não raro, ouço coisas como: “os religiosos querem proibir o aborto simplesmente porque ‘Jesus quis assim’. O Estado é laico, não interessa o que Jesus quis; crenças religiosas devem ficar de fora do debate político”. Por incrível que pareça, nesse texto procurarei mostrar como estamos errados a respeito disso: as crenças religiosas podem sim entrar no debate político como argumento, mesmo no Estado laico.

Calma, calma! Eu sei que quando alguns leram isso, já ficaram ouriçados. Não desistam do texto ainda... A princípio, é direito de qualquer cidadão entrar com qualquer argumento num debate político, mesmo que seja de conteúdo religioso. Todavia, defenderei aqui que em alguns casos a crença religiosa como argumento no debate político não só é um direito, como também é desejável. Você de esquerda, não desista. Já vamos chegar lá.

Primeiramente, o que é um Estado laico? Muito grosseiramente, é um Estado que não possui religião oficial, que não privilegiará nenhuma religião com relação à organização da pólis. Eu creio que isso, somado às concepções de justiça que buscam fugir da moral, criou essa coisa na nossa cabeça de que as discussões políticas num Estado laico devem ser desprovidas de qualquer resquício de moral. 

Ou seja: o que eu acho bom pode ser diferente do que você acha bom, moralmente falando. Então, é melhor a gente deixar esse papo moral pra lá se tratando da criação de leis para todos, por exemplo. Por isso nós ironizamos tanto os religiosos. De certa forma, eles querem fazer valer a moralidade deles na política; enquanto nós queremos uma política que seja neutra moralmente, de maneira que qualquer moral possa ter a liberdade de ser praticada.

Esse nosso desejo de neutralidade moral do Estado e das leis, creio eu, pode até ser nobre e ter boas razões para ser; todavia, em alguns casos, essa neutralidade é quase impossível, até mesmo indesejável. Fornecerei um exemplo aqui, dado por Michael Sandel no seu primoroso curso “Justiça: o que é fazer a coisa certa”, que mostra como às vezes é impossível escapar do debate moral na política.

Quando o furacão Katrina assolou a cidade de Nova Orleans, nos EUA, muitas pessoas perderam suas casas e a cidade virou um caos. A falta de energia elétrica, comida e água foram apenas algumas das situações gravíssimas deixadas por esse desastre natural. Na época, alguns comerciantes elevaram bastante o preço de mantimentos e serviços, cobrando valores elevadíssimos dos cidadãos por reformas, água e comida. Isso acabou causando certa revolta em parte do país, pois os comerciantes estariam se aproveitando da situação precária para lucrar. 

Alguns economistas adeptos do livre-mercado os defenderam: “ora, mas a noção de preço justo não existe. O que existe é a oferta e a demanda. Esses comerciantes fizeram o preço de acordo com a demanda”. Por outro lado, alguns cidadãos ficaram furiosos com a ganância dos comerciantes que se aproveitaram dessa situação de desespero para lucrar.

Nesse ponto, se coloca dois posicionamentos: ou o Estado não intervém na liberdade que esses comerciantes tem de fazer o próprio preço na venda de seus bens e serviços, ou o Estado intervém e põe um limite nesses preços. Mas por que o Estado deveria fazê-lo?

Aqui é que nós, os paladinos da neutralidade moral do Estado, nos enrolamos. Não vejo nenhum argumento para defender que o Estado intervenha nessa situação a não ser o de que ela é uma forma de exploração, gananciosa, de pessoas que estão em situação de desespero. 

Ou seja: é errado se aproveitar e lucrar em cima de pessoas desesperadas. Mas, por que é errado? Porque é! Porque meu senso moral diz que é. Aqui, meu argumento pouco se diferencia do argumento religioso do “porque Jesus quis”, visto que algumas vezes o “porque Jesus quis” nada mais é do que o “porque é o moralmente correto”. 

Ora, mas se eu desejo que o Estado intervenha nessa situação limitando os preços que os comerciantes colocam em suas mercadorias, e eu o faço com uma justificativa moral, então eu estou desejando que o Estado não seja neutro moralmente nessa questão. Mas o que é o correto, então? Deixar pessoas desesperadas serem exploradas?

Nesse contexto, quando eu acho que a crença religiosa é desejável no debate político? Penso que ela é desejável quando ela introduz um código moral no debate político em casos em que é difícil escapar do debate moral. Ou seja, penso que há casos nos quais um código moral, seja ele vindo da religião ou não, nos é útil politicamente e, nesses casos, só nos resta colocar os diferentes códigos morais, as discussões sobre o que é bom, no debate político, democraticamente. 

Isso não significa que seja correto impor meu código moral em todo caso. Significa apenas que, não podendo escapar de um debate moral sobre determinado assunto político, o melhor a fazermos é justamente colocarmos na jogada, democraticamente, nossas noções do que é bom, ou mal, em debate, em busca de uma sociedade melhor, menos cruel.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Justa Causa


Roberto trabalhava num banco fazendo análises para concessão de crédito. A política do banco era ceder empréstimo para o máximo de pessoas possível, mesmo sabendo que o solicitante ficaria pendurado até o pescoço. As leis do país e os critérios do banco permitiam isso. Além disso, Roberto ganhava uma comissão gorda. Por que não? 



Certo dia, Roberto atendeu um senhor visivelmente desesperado, que possuia uma fisionomia muito parecida com a de seu falecido pai. O homem precisava de um empréstimo para pagar uma velha dívida. Todavia, na análise, Roberto percebeu que esse empréstimo não seria a melhor solução para o senhor que sentava à sua frente. Se ele concedesse o empréstimo, o senhor ficaria numa enrascada financeira muito mais séria do aquela em que já estava. 

Roberto pensou na política do banco, pensou na prometida comissão... Não deu. Não iria aprovar aquele empréstimo, visto a situação daquele senhor. Não era isso que ele iria querer para o falecido pai dele. Não era justo. Por isso, Roberto foi conversar com seu gerente para esclarecer o por que não aprovaria o crédito. 

Chegando lá, ele explicou tudo ao chefe e, mesmo assim, o gerente mandou Roberto aprovar o crédito. O funcionário, mais uma vez, numa última tentativa de esclarecimento, explicou a situação. Mas o gerente bateu o pé que ele deveria aprovar o empréstimo, dando-lhe uma ordem direta.

Roberto não acatou a ordem e rejeitou o pedido de empréstimo do senhor que parecia seu falecido pai. No outro dia, Roberto foi chamado ao RH do banco e recebeu a notícia: fora demitido por justa causa.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Don Jon: Por que o sexo é melhor que a pornografia?


SPOILER ALERT


“Pornografia é melhor sexo”. É essa a verdade que Don Jon, protagonista do ousado filme “Don Jon”, escrito, dirigido e estrelado por Joseph Gordon-Lewitt, repete para si mesmo. Jon (Joseph Gordon-Lewitt) é um jovem viciado em pornografia e masturbação, sendo que assiste pornô todos os dias. Todavia, ele não é o que os norte-americanos chamam de “loser”. Alto, bonitão e "pegador", Jon é um assíduo frequentador de baladas, quase sempre levando mulheres para cama. Todavia, mesmo fazendo muito sexo, ele insiste que gosta mais do pornô do que do “sexo de verdade”.


Todo dia Jon faz uma faxina metódica em sua casa, vai à academia fazer musculação e, aos finais de semana, visita a igreja com sua família. Lá faz sua confissão ao padre, e volta e meia vai à balada procurar mulheres. É sempre a mesma coisa, essa é sua rotina. Depois do sexo, o pornô sempre se mostra melhor para ele. 


Um dia, Jon conhece na balada uma bela mulher chamada Barbara (Scarlett Johansson) e se apaixona por ela. Eles começam a namorar e ele faz tudo que ela quer, para mantê-la perto, inclusive adquire hábitos de que ele mesmo não gosta, mas que ela acha bom para ele. Entretanto, na hora do sexo, mesmo loucamente apaixonado, Jon chega à mesma conclusão de sempre: pornô é melhor que sexo. Mas, afinal de contas, por que diabos Jon continua a achar o pornô melhor?


Alguns filósofos e pensadores de nosso tempo, entre esses incluindo o meu amigo Paulo Ghiraldelli Jr., assim como o psicanalista Contardo Calligaris, vem desenhando em seus textos o que Ghiradelli tem chamado de “Era da futilidade total”. Tanto Ghiraldelli como Calligaris expressam belamente essa ideia através de uma interessante leitura do filme The Bling Ring, de Sofia Coppola. Qual a ideia, resumindo muito grosseiramente? A ideia é que a nossa geração tem desempenhado cada vez mais comportamentos que são sintomas de uma “era do vazio”. Grande parte do que fazemos são apenas a criação mecânica e repetitiva de imagens, sendo que não possuímos qualquer vivência ou experiência que sustentem essas imagens. Esse fenômeno vem aliado com uma notória perda da sensibilidade e capacidade se sentir prazer. 


Dito de outra forma, vivemos não uma era erótica (guiada pelo deus Eros), mas sim uma era do pornô. E qual a diferença entre o erótico e o pornográfico? Enquanto o erótico é algo mais do campo do simbólico, algo que trabalha com nossos sentidos num nível mais complexo, o pornográfico (“grafia do sexo”) é descritivo. Sendo assim, enquanto os antigos gregos viviam numa sociedade cujas relações eram guiadas por eros, eróticas, algo que é difícil de imaginar para nós, modernos, nossa sociedade parece ser cada vez mais deserotizada: perdemos a sensibilidade, a capacidade de sentir prazer, e acabamos trocando isso por pornografia e masturbação, já que esse é o máximo de prazer que conseguimos sentir. Como escreveu Ghiraldelli: “Numa sociedade de fedidos, o desodorante vende muito, já numa sociedade deserotizada, pornografia vende muito”. 


Além disso, Eros é o tipo de amor que só se faz com relação ao amado, não se faz sozinho. É preciso haver um “nós” para que Eros esteja presente. Nesse ínterim, o sexo que se faz guiado por Eros é muito diferente do sexo deserotizado, incluindo a masturbação, não só porque o primeiro envolve uma maior sensibilização e prazer, como também porque nesse é preciso haver o outro para se perder no outro.



Nesse contexto, Jon nada mais é do que um fruto da nossa sociedade deserotizada. Toda sua rotina é uma constante, repetitiva e mecânica masturbação (a musculação, o jantar em família, a igreja, o pornô), pois isso é tudo que ele sabe fazer, e o pornô é o máximo que a habilidade sensorial dele consegue desempenhar de prazer. Mesmo se apaixonando por Barbara, mesmo mudando bastante por ela, Jon continua apenas se masturbando, ainda quando faz sexo.


É apenas quando ele termina com Barbara, conhece e dá uma chance a Esther (Juliane Moore), uma mulher mais velha e mais experiente que ele, que ele aprende o que está havendo de errado. Ela lhe diz: “mesmo quando você faz sexo, você é muito egocêntrico, você faz tudo sozinho, apenas para si mesmo”. Os dois fazem o primeiro sexo erótico de Jon, e só então ele começa a perceber que para se perder no sexo, é preciso se perder junto com o outro. A partir daí, toda rotina masturbatória que era a vida dele se altera: ele deixa a musculação (exercício físico de rotina mecânica) para jogar basquete (atividade física prazerosa) e faz o primeiro sexo que lhe permitiu afirmar que sexo era melhor que pornô.


No mais, recomendo bastante esse filme para todos nós, habitantes da sociedade deserotizada.


PS: Peço para todos que ainda irão assistir esse filme que esqueçam a tradução do título para o português e não deem muita bola para a sinopse.

PPS: Algumas semanas depois de eu publicar esse texto, o Paulo Ghiraldelli postou esse texto que, penso, tem muito a ver com o filme: http://ghiraldelli.pro.br/e-sexo/