terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Novo Blog - Tiago de Andrade

Caros leitores do Desbanalizando. Resolvi criar um novo blog de cunho mais pessoal, mais autoral mesmo. Manterei o conteúdo filosófico nesse novo blog e também um pouco de literatura (totalmente experimental e iniciante). Por isso, peço para que visitem, a partir de agora, o blog: http://blogtiagodeandrade.blogspot.com.br/

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

“Porque Jesus quis” é argumento, sim

Quando crenças religiosas podem adentrar discussões políticas?

Nós, que nos identificamos (a posteriori) com posicionamentos mais à esquerda no espectro político, temos certa mania de ironizar os religiosos com relação às discussões políticas. A discussão sobre o aborto é um grande exemplo disso. Não raro, ouço coisas como: “os religiosos querem proibir o aborto simplesmente porque ‘Jesus quis assim’. O Estado é laico, não interessa o que Jesus quis; crenças religiosas devem ficar de fora do debate político”. Por incrível que pareça, nesse texto procurarei mostrar como estamos errados a respeito disso: as crenças religiosas podem sim entrar no debate político como argumento, mesmo no Estado laico.

Calma, calma! Eu sei que quando alguns leram isso, já ficaram ouriçados. Não desistam do texto ainda... A princípio, é direito de qualquer cidadão entrar com qualquer argumento num debate político, mesmo que seja de conteúdo religioso. Todavia, defenderei aqui que em alguns casos a crença religiosa como argumento no debate político não só é um direito, como também é desejável. Você de esquerda, não desista. Já vamos chegar lá.

Primeiramente, o que é um Estado laico? Muito grosseiramente, é um Estado que não possui religião oficial, que não privilegiará nenhuma religião com relação à organização da pólis. Eu creio que isso, somado às concepções de justiça que buscam fugir da moral, criou essa coisa na nossa cabeça de que as discussões políticas num Estado laico devem ser desprovidas de qualquer resquício de moral. 

Ou seja: o que eu acho bom pode ser diferente do que você acha bom, moralmente falando. Então, é melhor a gente deixar esse papo moral pra lá se tratando da criação de leis para todos, por exemplo. Por isso nós ironizamos tanto os religiosos. De certa forma, eles querem fazer valer a moralidade deles na política; enquanto nós queremos uma política que seja neutra moralmente, de maneira que qualquer moral possa ter a liberdade de ser praticada.

Esse nosso desejo de neutralidade moral do Estado e das leis, creio eu, pode até ser nobre e ter boas razões para ser; todavia, em alguns casos, essa neutralidade é quase impossível, até mesmo indesejável. Fornecerei um exemplo aqui, dado por Michael Sandel no seu primoroso curso “Justiça: o que é fazer a coisa certa”, que mostra como às vezes é impossível escapar do debate moral na política.

Quando o furacão Katrina assolou a cidade de Nova Orleans, nos EUA, muitas pessoas perderam suas casas e a cidade virou um caos. A falta de energia elétrica, comida e água foram apenas algumas das situações gravíssimas deixadas por esse desastre natural. Na época, alguns comerciantes elevaram bastante o preço de mantimentos e serviços, cobrando valores elevadíssimos dos cidadãos por reformas, água e comida. Isso acabou causando certa revolta em parte do país, pois os comerciantes estariam se aproveitando da situação precária para lucrar. 

Alguns economistas adeptos do livre-mercado os defenderam: “ora, mas a noção de preço justo não existe. O que existe é a oferta e a demanda. Esses comerciantes fizeram o preço de acordo com a demanda”. Por outro lado, alguns cidadãos ficaram furiosos com a ganância dos comerciantes que se aproveitaram dessa situação de desespero para lucrar.

Nesse ponto, se coloca dois posicionamentos: ou o Estado não intervém na liberdade que esses comerciantes tem de fazer o próprio preço na venda de seus bens e serviços, ou o Estado intervém e põe um limite nesses preços. Mas por que o Estado deveria fazê-lo?

Aqui é que nós, os paladinos da neutralidade moral do Estado, nos enrolamos. Não vejo nenhum argumento para defender que o Estado intervenha nessa situação a não ser o de que ela é uma forma de exploração, gananciosa, de pessoas que estão em situação de desespero. 

Ou seja: é errado se aproveitar e lucrar em cima de pessoas desesperadas. Mas, por que é errado? Porque é! Porque meu senso moral diz que é. Aqui, meu argumento pouco se diferencia do argumento religioso do “porque Jesus quis”, visto que algumas vezes o “porque Jesus quis” nada mais é do que o “porque é o moralmente correto”. 

Ora, mas se eu desejo que o Estado intervenha nessa situação limitando os preços que os comerciantes colocam em suas mercadorias, e eu o faço com uma justificativa moral, então eu estou desejando que o Estado não seja neutro moralmente nessa questão. Mas o que é o correto, então? Deixar pessoas desesperadas serem exploradas?

Nesse contexto, quando eu acho que a crença religiosa é desejável no debate político? Penso que ela é desejável quando ela introduz um código moral no debate político em casos em que é difícil escapar do debate moral. Ou seja, penso que há casos nos quais um código moral, seja ele vindo da religião ou não, nos é útil politicamente e, nesses casos, só nos resta colocar os diferentes códigos morais, as discussões sobre o que é bom, no debate político, democraticamente. 

Isso não significa que seja correto impor meu código moral em todo caso. Significa apenas que, não podendo escapar de um debate moral sobre determinado assunto político, o melhor a fazermos é justamente colocarmos na jogada, democraticamente, nossas noções do que é bom, ou mal, em debate, em busca de uma sociedade melhor, menos cruel.