sábado, 26 de março de 2011

O Erótico e o Pornográfico

“Uma sociedade de fedidos vende muito desodorante. Uma sociedade deserotizada vende muita pornografia” Paulo Ghiraldelli Jr.

Já dizia Herbet Marcuse que nossa sociedade é deserotizada. Mesmo assim, somos extremamente sexualizados. Compramos muita pornografia pois queremos recuperar nossa dimensão erótica perdida. Mas qual a diferença entre o erótico e o pornográfico?

A revista Playboy é erótica ou pornográfica? Os filmes eróticos são aqueles em que o sexo não é explicito? Nós até podemos saber que erotismo e pornografia são coisas diferentes, o difícil é estabelecer essa distinção. Se o erótico, por vir de eros, é aquilo que aponta para o amor relacionado ao sexo, e o pornográfico também envolve o sexo, qual a diferença? Aqui, não me atreverei a dar uma resposta definitiva, mas apontarei alguns caminhos e suas limitações.

Podemos tentar uma busca no Google, o que parece não ajudar muito. Em um dos resultados dessa pesquisa um blogueiro dirá que “a diferença entre erotismo e pornografia é pessoal”. Ora, não raro, dizer que uma coisa é “pessoal”, ou subjetiva, é nada mais nada menos que fugir da discussão. Querendo-se definir o que é erotismo e pornografia, entra-se numa aporia (impasse) e, aí, algum sabichão invoca um relativismo rasteiro, que é diferente do relativismo filosófico de Protágoras, ao dizer: “isso é pessoal”. Pronto, cada um virou dono da própria verdade e não tem mais o que se discutir. Essa, com certeza, não é uma boa saída para diferenciarmos o erotismo da pornografia.

Ainda nos resultados do Google podemos encontrar que o erotismo e a pornografia são a mesma coisa, ou que o “erotismo de hoje é a pornografia de ontem”. Ora, para se dizer isso é necessário ter uma distinção sólida entre pornografia e erotismo, o que o tal site não aponta. Mesmo assim podemos imaginar o que ele quis dizer. O que chamamos hoje de erótico (talvez enganadamente), como o “sexo não explicito”, seria a pornografia do passado. Tudo bem, até aí faz sentido. Mas isso faz mais sentido quando falamos de filmes. Ao falarmos de arte em geral, por exemplo, e isso inclui poesia, esculturas e quadros, esse tipo de afirmação vai por água abaixo. Podemos até dizer que o nu artístico em algum momento da história foi visto com maus olhos, mas isso não significa uma progressão do pornográfico para o erótico, de maneira que a coisa é pornográfica e depois vira erótica. Quando os antigos gregos faziam suas esculturas representado o corpo belo, proporcional, aquilo não era pornográfico e, num passe histórico progressivo, hoje vemos aquelas esculturas como eróticas. Aquilo era, mesmo, erótico. Talvez, em algum momento da idade média, tais esculturas foram consideradas obscenas. Mas isso não aponta para uma relação progressiva de “ontem e hoje”.

A partir daqui, podemos encontrar resultados mais bem trabalhados no Google. Resultados que apontam para distinções no âmbito da filosofia, da arte e do feminismo. Por isso, penso que já podemos sair do Google para buscar distinções mais profundas. Apontarei duas distinções entre o erótico e o pornográfico que achei interessantes. A primeira vem do Routledge Encyclopedia of Philosophy, e a segunda, do filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. Lembrando que tanto um como outro não deixam de esclarecer que tal distinção é muito debatida.

A primeira distinção (Routledge), que podemos encontrar no artigo Erotic art, é que a pornografia está isenta de intenções artísticas e representa o sexo apenas com o intuito de estimular sexualmente o espectador, não trabalhando com significados profundos do sexo. Além disso, tal distinção aponta também que a pornografia tem uma função de degradação do sujeito, principalmente da mulher. Essa distinção caminha junto com uma linha do feminismo, onde qualquer tipo de reificação (objetificação, tratar o outro como objeto) da mulher é um ato de violência.

A distinção que o filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. faz entre o erótico e o pornográfico se aproxima da distinção da Routledge num ponto, mas se afasta em outro. Para o filósofo, o pornográfico seria descritivo, uma descrição do obsceno (lembrando que a descrição pode ser imagética, por imagens, como num filme). O próprio Ghiraldelli não aponta isso, mas podemos observar tal definição na própria etimologia da palavra pornografia: pornos (prostituta) e graphos (grafia, escrita). Pornografia é a escrita da prostituta, que é, em certa medida, a descrição do obsceno. Se a pornografia é descritiva, o erótico trabalha mais no campo do simbólico, da imaginação, e por isso se aproxima muito mais da arte do que a própria pornografia. Enquanto a pornografia está ali, descrevendo o sexo, o erótico faz alusões ao sexo. Nesse ponto a distinção do filósofo se aproxima da distinção da Routledge quando essa aponta que o erótico é o artístico e o pornográfico não. Mesmo assim, é possível intuir que Ghiraldelli talvez não concordasse muito com a segunda parte da distinção da Routledge, sobre a questão da degradação da mulher. Veremos por quê.

Quando houve aqui no Brasil a discussão do Vale-Cultura, se delineou no senado um debate sobre o que seria, e não seria, cultura para se saber que tipo de aquisições esse vale permitiria. Na mesma época, o colunista da Folha de S. Paulo Gilberto Dimmenstein escreveu um artigo afirmando que o vale-cultura não poderia ser trocado por revistas Playboy, afinal, aquilo não seria cultura. Algumas feministas diriam diferente. Diriam que a Playboy poderia até ser cultura, mas uma cultura da violência contra a mulher, tratando mulheres como objetos de representações ventáveis. Nessa mesma época, Ghiraldelli postou um texto rebatendo o argumento de Dimmenstein. Ora, a playboy não trabalha meramente com a descrição do obsceno, ela envolve o trabalho de um artista, o fotógrafo, que deve criar um contexto “excitante” que funciona somente em nossa época, despertando estímulos sexuais subjetivos e atuando no campo simbólico, da imaginação. Sendo assim, a revista Playboy seria não só cultura, mas também não seria pornográfica, e sim erótica. Além disso, em outras produções, Ghiraldelli aponta para uma questão interessante que destoa da visão feminista que condena todo tipo de objetificação: o sexo só é bom quando há objetificação, na medida certa, do outro. Nem toda objetificação seria, portanto, degradação, no sentido da violência. Aqui, cabe pensar também se a objetificação da mulher na revista Playboy, por exemplo, é mesmo uma violência.

Podemos intuir de tudo isso que o erótico se aproxima da arte e o pornográfico é descritivo. Entretanto, mesmo essa distinção, por vezes, se torna nebulosa. Ora, se a revista Playboy é erótica por envolver o trabalho artístico do fotógrafo, criando um contexto simbólico onde a subjetividade daquele que vê está envolvida, nem todo filme que chamamos de pornográfico é de inteiro pornográfico. Alguns filmes, por exemplo, envolvem contextos imaginativos excitantes típicos de nossa época, possuem enredos com situações do tipo “professor e aluna”ou “Chefe e secretária”, ou vice-e-versa. Mesmo assim, podemos dizer que o foco está na descrição do ato sexual, o que os torna predominantemente pornográficos.

Aqui, voltamos à questão da sociedade deserotizada que compra muita pornografia. Como somos incapazes de sermos eróticos (somos fedidos), no sentido do prazer pela imaginação, temos que comprar muita pornografia (desodorante). Por mais que alguns condenem isso, todas as bundas na TV e toda a oferta do mercado pornográfico, que possui o maior número de acessos na internet, parecem não serem capazes de nos re-erotizar.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Sócrates: o primeiro troll da história?

Após o último post, algumas pessoas vieram me pedir um maior esclarecimento sobre Sócrates. Ainda não conseguiam entender como Sócrates, em sua postura do suposto “Só sei que nada sei”, não estava sendo humilde. Ora, para perceber como a postura de Sócrates nada tinha a ver com humildade basta saber duas coisas: a noção de humildade, que é cristã, só surgiu séculos depois de Sócrates; e, além disso, sua própria história e filosofia apontam para uma postura inteligente e até orgulhosa, não humilde. Sobre esse último aspecto,  histórico e filosófico, iremos tratar agora.

Boa parte do que nos é passado sobre Sócrates vem pela boca de Platão, seu discípulo. Não há nenhum registro de que Sócrates tenha escrito algo especificamente sobre sua filosofia. Por isso, alguns estudiosos, por perceberem que seria complicado distinguir o Sócrates histórico do Sócrates personagem de Platão, costumam conceber o Sócrates histórico como aquele que seus diálogos terminam em aporia, em impasses. Ou seja, o Sócrates histórico não dá respostas sobre as perguntas que faz, diferentemente do possível Sócrates personagem de Platão, que trabalhava com a maiêutica (parto) das respostas a partir de si mesmo, tendo uma conexão com o inscrito no Oraculo de Delfos, “Conhece-te a ti mesmo” (Essa frase não é de Sócrates).

Como Platão nos apresenta Sócrates? Principalmente através dos diálogos. Platão tem uma obra extensa composta por diálogos em que seu mestre participa, conversando com diversas pessoas sobre questões ético-morais. A grande história de Sócrates nos é apresentada na Defesa de Sócrates, onde Platão nos apresenta a defesa que Sócrates fez de si mesmo em seu julgamento. Sócrates foi acusado por alguns cidadãos sobre a asserção de que ele corrompia os mais jovens e cultuava novos deuses. Ali, em sua defesa, Sócrates conta sua história explicando o porque se tornou tão odiado na cidade pelos seus acusadores. Conta que, certa vez, seu amigo Querofonte foi ao Oraculo de Delfos e se atreveu a perguntar se havia alguém mais sábio que Sócrates. Lá, recebeu a resposta de que não havia.

Ao receber essa notícia do amigo, Sócrates conta que ficou intrigado, que precisava interpretar essa mensagem dos deuses e, para isso, procuraria por vários cantos pelos conhecidos sábios para provar ao deuses que ele não era o mais sábio. Ao chegar a cada local, Sócrates perguntava pelo mais sábio e começava um diálogo com ele. Acabou concluindo que, de fato, era mais sábio que todos eles. Chegou a essa conclusão porque perguntava, geralmente, sobre questões ético-morais (o que é a justiça? A piedade?) e colocava todos os supostamente sábios em contradição. Ora, Sócrates reconhecia que nada sabia sobre o que perguntava (por isso “Só sei que nada sei” é uma frase muito geral para o que temos de Sócrates), os sábios não reconheciam isso, apenas pensavam que sabiam, e, ao menos nisso, Sócrates viu que era mais sábio que todos eles. Para Sócrates, sobre suas questões, somente os deuses poderiam saber. Por isso mesmo, no diálogo Fedro, Sócrates afirma que a denominação “sábio” (sophós) cabe somente aos deuses; o homem só pode ser filósofo (philósophos), aquele que é amante, ou amigo, da sabedoria.

Confesso que é engraçado ler alguns diálogos de Sócrates. No que reconheceríamos hoje como uma aparente humildade (mas que não é humildade!), Sócrates fazia suas perguntas, brincava, ironizava e, no fim das contas, era muito provocativo. Numa inteligência incrível, fazia alguns ficarem sem graça e até nervosos. Com certeza irritou muitos em Atenas fazendo isso e começou a ser odiado pelos “sábios”. Certa vez, contando de Sócrates para meu irmão, ele me disse: “Sócrates, então, foi o primeiro troll da história”. Ora, o troll, no linguajar da internet, é aquele que está ali sempre provocando, discordando, incomodando, às vezes inteligentemente, às vezes de forma burra. De certa forma, em seu aspecto provocativo, Sócrates trollou Atenas. Mas aí nos restringiremos ao sentido positivo da provocação: a provocação que faz pensar. Sócrates tanto fez isso que, odiado por alguns, foi julgado e sentenciado a morte.

Se quiser saber mais, recomendo: http://ghiraldelli.pro.br/2011/02/28/socrates/ 

sábado, 5 de março de 2011

As quatro citações mais populares (e mal interpretadas) da filosofia

Existem algumas citações do campo da filosofia que se tornaram muito pop's, famosas mesmo. É bom que a filosofia se torne famosa, entretanto, é ruim quando queremos entender a filosofia por frases soltas, na base do "ouvi falar". Pior ainda é quando citamos essas frases sem entendê-las. Aqui vão as quatro frases mais famosas, e mal interpretadas, da filosofia, seguidas de uma tentativa de esclarecimento e contextualização para que não fiquem tão soltas por aí:

“A religião é o ópio do povo” K. Marx – Essa citação de Marx, não raro, é interpretada de forma equivocada. Muitos a entendem com o sentido de que a religião manipula e ilude o povo, como a ilusão criada por se fumar ópio. Entretanto, essa não é uma interpretação coerente nem no contexto em que a frase foi posta, nem segundo o próprio pensamento de Marx. Para o Marxismo, tendo como base o materialismo histórico, não é a consciência que determina aquilo que é material, mas sim o que é material que determina a consciência. Aqui, o verbo determinar não deve ser entendido de forma rígida, determinista, afinal, apesar da predominância do material sobre a consciência, Marx concebe a relação entre o material e as ideias como dialética. Sendo assim, a religião, tida como ópio, faz parte do campo da consciência e não do campo material. Não é ela que cria a ilusão que determina a miséria do povo; ela, na realidade, é o resultado das miseráveis condições materiais pelas quais o povo sofre. Marx, aqui, talvez apontasse que a religião é antes uma consequência da exploração do trabalhador, do que sua causa. Oprimido materialmente, o povo busca dar conta de seu sofrimento através do alívio da consciência, com o ópio, ou seja, com a religião. Aqui vai a frase com um pouco mais de contexto:  “A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo.

“Só sei que nada sei” Sócrates – O problema que existe na interpretação dessa frase atribuída a Sócrates (ela surge pelos escritos de Platão e não se sabe se Sócrates fez tal afirmação ipsis litteris), na verdade, está nas relações que acabamos estabelecendo entre ela e outras coisas que não eram cabíveis na antiga Grécia. O filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. denuncia essa má relação que fazemos entre essa sentença, no contexto em que ela surgiu, e a humildade. Ora, a noção de humildade é cristã, não existia na antiga Grécia. Quando Sócrates possivelmente coloca que só sabia que nada sabia (ou "que não sabia nada sobre o que perguntava ao atenienses"), isso foi antes uma afirmação de inteligência, da qual Sócrates tinha orgulho, do que de humildade. Sócrates queria dizer que como filósofo ele só poderia ser amante da sabedoria, mas sábio mesmo, só os deuses, pois somente eles podiam saber das coisas que Sócrates perguntava na praça (justiça, piedade, coragem), ficando para o filósofo uma única certeza: a de que nada sabia sobre essas coisas.

Deus está morto” F. Nietzsche – Essa talvez seja a frase mais mal interpretada de toda a filosofia. Isso porque ela, como a frase de Marx, cita algo que faz parte do campo da religião. Entretanto, de nada adianta querer entender frases soltas. Nietzsche era um grande crítico da metafísica, e consequentemente da metafísica de Platão, e, com essa frase, queria mais constatar que as justificativas e fundamentos que damos para nossa existência em um “além-mundo” estavam mortas, do que fazer propaganda do ateísmo. Nietzsche estava atestando, no final das contas, que a metafísica (Deus) morreu. E quem foi o assassino? O positivismo. Depois dele, não poderiamos mais julgar nosso mundo segundo preceitos metafísicos e, no final das contas, sabendo disso, todos nós “matamos Deus”. “Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós!

“O inferno são os outros” J. P. Sartre – Essa frase, sozinha, sem o devido contexto da filosofia Sartriana, dá brecha para se pensar que seria melhor se os “outros” não existissem para atrapalhar a mim, o mundo, ou qualquer coisa do tipo. Entretanto, isso não se encaixa na filosofia de Sartre. Ora, o existencialismo é aquela filosofia em que a existência precede a essência. Em outras palavras, antes existimos do que somos e nossa essência não é pré-concebida. A essência de cada um de nós é resultada da nossa existência, das nossas escolhas durante a vida. Ou seja, eu, como ser humano, sou as escolhas que tomo durante a minha vida e, no fim das contas, é isso que me difere das outras coisas: a liberdade. “O ser humano está condenado a liberdade”, segundo Sartre, porque não pode escapar de sua responsabilidade de decidir. Ao tomar uma decisão, o ser humano deve sofrer a angústia da escolha e ser responsável por si mesmo e por toda a humanidade. Se não for assim, não é verdadeiramente livre. E como o ser humano pode ter acesso e experimentar a sua própria essência? A partir do outro, da convivência. O inferno é esse. Além de estar condenado à liberdade, tendo que fazer escolhas sob minha responsabilidade, os outros me impedem de fazer tudo que quero, entretanto, é somente através dos outros que posso vislumbrar minha essência; somente através do “inferno” da convivência e da condenação à liberdade que os seres humanos podem ser.