quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

O Equilibrista e o Belo

“Veja O Equilibrista,doc s/PhilipePetit,e pense no lugar q a gratuidade(onde o belo e a virtude se encontram aquém do sentido)tem em sua vida

Quando esse tweet de Luiz Eduardo Soares (@luizeduardosoar) surgiu na tagline do meu twitter, não entendi muito bem o que ele quis dizer. Gratuidade? Belo e virtude aquém do sentido? Fiquei tão curioso em desvelar o significado dessa frase que resolvi assistir o filme indicado por ele; era lá que a resposta iria acenar pra mim. E acenou mesmo. Belíssima.

O Equilibrista (Man on Wire), de 2008, é um filme/documentário dirigido por James Marsh e tem como protagonista Phillipe Petit, equilibrista francês que em 1974 realizou uma travessia através de um cabo de aço suspenso entre as torres do World Trade Center. O filme é baseado no livro To Reach the Clouds que, posteriormente, foi relançado com o nome Man on Wire.

Phillipe, quando jovem, foi autodidata na arte do equilibrismo. Desde menino, andar sobre uma corda, no limite entre a sustentação e a queda, entre a vida e a morte, é a paixão de Phillipe. Já com quase 60 anos, ele nos conta, através do filme, como teve a visão do maior sonho de sua vida: estava na sala de espera do dentista, com uma dor de dente, abriu o jornal e viu a foto de um projeto das torres gêmeas (que na época ainda estavam para serem construídas). A partir dali não teve mais dúvida, queria caminhar entre as torres. Fingiu que espirrou, arrancou a folha do jornal com a foto e saiu correndo para casa com o dente doendo ainda.

Ouvir Phillipe contando suas próprias histórias, cheias de figuras de linguagem típicas da literatura, é instigante. É quase impossível não se apaixonar pela personalidade do equilibrista, que parece viver numa poesia cheia de vida, andando pela beirada do abismo. Conta sua história com tanta empolgação que é como se tivesse se passado há apenas alguns segundos atrás. Antes de caminhar entre as torres gêmeas, Phillipe já havia caminhado sobre a Catedral de Notre-Dame. Invadiu a catedral com os amigos, amarrou a corda, e caminhou sobre ela. Assim, mesmo, ilegalmente. Fez o mesmo na Austrália e foi exatamente assim que ele fez nas torres gêmeas, claro que com muito mais planejamento.

Se o leitor pensa que ele pediu permissão para andar entre as torres, está enganado. Phillipe e seus colegas planejaram a invasão por um longo tempo, entre idas e vindas da França aos EUA. Para o equilibrista, aquilo era como um assalto a banco, como um daqueles roubos super-planejados de Onze homens e um segredo. Depois de muito trabalho, com as torres gêmeas ainda em construção, Phillipe foi lá com seus “comparsas”, amarraram a corda e ele realizou seu sonho. Foi belíssimo. Não pude conter as lágrimas quando os amigos e a ex-namorada de Phillipe choravam ao relembrar o clímax daquela história. A queixa que consta contra ele no relatório oficial da polícia? “Homem no cabo” (Man on wire).

Até esse momento do filme eu já havia esquecido do tweet de Luiz Eduardo Soares. Não que ele não fosse mais importante, mas sim porque o filme me envolveu tão profundamente que o tweet sumiu por um tempo de minha mente. Entretanto, após Phillipe ter caminhado entre as torres e ser algemado e levado pela polícia, uma cena me surpreendeu, repentinamente, fazendo emergir o misterioso tweet em meu consciente, revelando seu potencial significado. Esses momentos de revelação intuitiva costumam ser chamados de epifania. Quando o equilibrista foi levado pela polícia, uma multidão de repórteres veio assedia-lo. Qual foi a principal pergunta dos repórteres para Phillipe? “Por quê?”. Queriam saber por que Phillipe havia realizado tal façanha. Havia alguma finalidade, algum sentido, naquilo? Esse tipo de pergunta era o que menos importava para ele. Não havias porquês, finalidade ou sentido naquele ato. Phillipe o fez porque era seu sonho, sua paixão. Era um ato corajoso e belo.

Podemos então dizer que Phillipe andou entre as torres gratuitamente. Na estética, em seu sentido filosófico, a experiência estética, ou experiência do belo,  é gratuita, desinteressada; ou seja, ela não almeja finalidades imediatas e práticas.  Não há os banais porquês que os repórteres tanto queriam. Em outras palavras, foi em um ato gratuito, aquém do sentido (sem qualquer pretensão de finalidades práticas ou porquês), que o equilibrista uniu a virtude (a coragem, por exemplo) e o belo ao dar seus passos sobre a corda entre as torres gêmeas.

Nesse sentido, podemos pensar no lugar que a gratuidade tem em nossas vidas. Geralmente procuramos o belo nos fins. Achamos que doar comida é belo porque a finalidade desse ato é sanar a fome dos necessitados. Mas o belo não está necessariamente nos fins. O belo pode ser o ato que é um fim em si mesmo, ou um meio sem fim, como a caminhada de Phillipe. Aqui, nos cabe a palavra contemplação; a atitude desinteressada, mesmo assim ativa, de se experimentar o belo. Qual a finalidade de ouvir uma prazerosa música? De contemplar uma obra de arte? De abraçar alguém ou ajuda-lo? De se cultivar a amizade? Não há finalidade imediata e prática para essas coisas. Nem tem porque haver também. O que é belo dispensa porquês. 

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

A Cura de Dexter

AVISO: Procurei redigir a minha interpretação do seriado evitando ao máximo os spoilers. Somente recomendo que você não leia caso não tenha visto nem a primeira temporada. Nesse caso, recomendo que assista a primeira temporada e volte para a leitura.

Quando assisti Dexter pela primeira vez, em 2006, em sua primeira temporada, tive a sensação de que esse seriado faria muito sucesso. Na época, soube de poucas pessoas que assistiam. Hoje, a minha sensação se confirma quando cada vez mais gente começa a assistir o seriado, seja comprando os box’s ou baixando da internet desde sua primeira temporada.

Sumariamente, Dexter é uma série, baseada num livro chamado Darkly Dreaming Dexter, de Jeff Lindsay, que conta a história de Dexter, um serial killer. Com todo cuidado que devemos tomar ao tratar de patologias da área da psicologia e da psiquiatria, afinal, esses transtornos possuem as suas complexidades e particularidades, nem sempre retratadas tão fielmente em obras de ficção, podemos dizer que, no caso de Dexter, ele é um psicopata, pois ao sofrer um trauma de infância, é incapaz de ter os mais variados sentimentos com relação a outras pessoas. A psicopatia se apresenta como um distúrbio que afeta suas emoções, fazendo com que ele não sinta remorso, nem culpa. Mais do que isso, Dexter seria “insensível”, não desenvolveria empatia e, portanto, seus laços sociais seriam forjados. Além disso, Dexter possui uma necessidade de matar.

Ao observar a infância de Dexter, seu pai, Harry, que era um policial muito respeitado na corporação, percebe que o filho possui os traços de um psicopata quando esse mata animais sem qualquer tipo de sentimento. Aqui, a crueldade do psicopata (apenas uma parcela de psicopatas são serial killers), se manifesta na sua capacidade de realizar atos cruéis sem qualquer tipo de remorso. Sendo policial, Harry procura, em segredo até da própria família, direcionar a patologia de Dexter para o “bem” através de um conjunto de regras. A partir daqui, como Dexter tem a necessidade de matar, ele só fará isso com quem “merece”, funcionando como uma espécie de anti-herói. Sendo assim, Dexter só matará outros assassinos e será, no limite, um “serial killer de seriais killers”.

Nesse ponto é que o seriado fica realmente interessante. Após a morte de Harry, Dexter segue as regras do pai à risca e procura forjar para si mesmo uma vida “normal”. Trabalha justamente para a polícia sendo quase que um legista, um perito em analisar cenas de crime, principalmente envolvendo sangue, aproveitando essa posição para investigar seus alvos. Sai com os colegas de trabalho, arranja uma namorada. Mas, no fundo, por ser um psicopata, o único sentido que ele vê em todas aquelas relações sociais é o disfarce de seu dark passenger, nome que ele dá à sua natureza psicopata, secreta e sombria. Em outras palavras, Dexter disfarça uma vida corriqueira, com todas as relações e rituais que lhe são característicos, para não ser pego.

Tudo vai muito bem com Dexter seguindo as regras do pai até que, em diversas situações, temporada após temporada, Dexter é levado a diversos conflitos que lhe farão questionar essas regras e até mesmo quem ele é. E que conflitos são esses? Justamente os conflitos que sua vida “normal”, que ele achava ser somente um disfarce, lhe impõe. Dexter é levado a sofrer nossos dramas mais cotidianos, a encarar nossos conflitos, envolvendo a irmã, a namorada, a família e os amigos. Por ser estranho a esse mundo que nos é corriqueiro, Dexter acaba exacerbando tais conflitos e se tornando cada vez mais humano, cada vez mais “normal". É justamente a dialética que se estabelece entre sua vida de psicopata, que ele considerava a única verdadeira, sua natureza, sua essência, e sua vida “normal”, vida essa que ele vai descobrindo não ser somente um disfarce, mas sim a sua própria gradual e explosiva cura, é que torna esse seriado, tão aparentemente cruel, extremamente sensível e humano. O amor, a amizade, a religiosidade e tantas outras coisas que para nós são corriqueiras, acabam por ser justamente o cerne dos conflitos do protagonista.

Se algumas características de Dexter não condizem com as patologias reais, ou se essa cura que ele vem desenvolvendo no decorrer da série não é possível na realidade, isso não importa. Dexter não está só propondo uma compreensão da psicopatia. Mais do que isso, Dexter nos convida para uma maior compreensão de nós mesmos. Somos colocados no lugar do protagonista para vermos de outra perspectiva nossas próprias vidas, nossos próprios dramas que, ao olhar de Dexter, que se tornará o nosso olhar através da série, são exacerbados e desbanalizados. Dexter nos auxilia a contemplar nossa humanidade através de um olhar exterior e aparentemente insensível, mas que no fundo reconhecemos porque é humano. Ele é o psicopata que vai se tornando humano através dos mesmos dramas pelos quais nos tornamos humanos também. A cura de Dexter se revela ao passo em que ele encara nosso cotidiano, a nossa condição humana. A cura de Dexter, aquilo que o torna cada vez mais "humano", é também a nossa cura.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

O Cachorro Loco

Gostaria de pedir licença ao leitor assíduo do blog pois hoje não postarei reflexões na linguagem usual do Desbanalizando. Ao invés disso, postarei um perfil em homenagem a meu falecido tio. Na verdade, nunca fui muito bom com narrativas, mas como escrevi esse perfil para uma disciplina e recebi um feedback bastante positivo de um professor que estimo muito, resolvi postá-lo.  


O Cachorro Loco

“O tio Henrique era foda”. Justamente assim que, repetidamente, os sobrinhos de Henrique faziam referência ao tio no seu próprio funeral. Mas não só os sobrinhos dele. Podia-se perguntar sobre o Henrique para qualquer irmão dele, ou mesmo para o pai, que a resposta seria a mesma. Só a mãe de Henrique, minha vó, não responderia tão realisticamente assim. Ela não. Com seu jeito mãe de ser, sempre polida, ela não diria que ele era foda; diria que ele “era fogo, viu”.

Nem todos eram sobrinhos do Henrique, todavia, quase todos na família o chamavam de tio Henrique. Era assim que, aos cinqüenta anos, ele era conhecido pela maiorias dos parentes. Como um dos sobrinhos dele, devo dizer que um certo mistério o circunscrevia, é verdade. É que o tio Henrique era conhecido de outra forma pela cidade de Ponta Grossa, onde morava. Para a cidade, ele não era o tio Henrique; para a cidade ele era o “Cachorro Loco”. E quando eu digo “para a cidade”, não se trata de uma sinédoque exagerada: “O Cachorro Loco” já foi tema de um artigo num jornal local dos Campos Gerais. 

Sobre esse mistério de nomenclatura, é bem provável que nenhum familiar saiba exatamente como esse apelido surgiu e nem o porquê. Mas, pelo tio Henrique ser “foda”, pelas suas características e histórias pessoais, posso muito bem imaginar boas pistas que direcionem para a origem desse irreverente apelido.

Para começo de conversa, Henrique era caminhoneiro. Desculpando-se os estereótipos, isso já pode dizer várias coisas sobre ele, coisas que aqui não explicitarei pois estamos lidando com um estereótipo conhecido. Mas uma das coisas que isso não diz é a respeito do seu tipo físico. O tio Henrique podia ter cinqüenta anos e ser caminhoneiro, mas não era um barrigudo relaxado. Muito pelo contrário, fazia exercícios físicos com freqüência e era um dos seres mais fortes e brutos que eu já  conheci. Por ossos do ofício, o Cachorro Loco já havia viajado o Brasil de cabo a rabo e sempre tinha muitas histórias pra contar. Como ele mesmo dizia: “quando vou ao nordeste não é pra passear em Fortaleza. Os turistas vão para as cidades grandes. Eu vou pelas periferias das cidades e vejo a situação desse país”.

Nesse quesito, podia-se se dizer que o tio Henrique surpreendia. Por ser caminhoneiro e bruto (não raro essas duas qualidades são redundantes), muitos de fora da família podiam não saber sobre seus hábitos de leitura e senso crítico. Lia muito, discutia história, mitologia e religião. Dizia que uma de suas vontades era fazer uma camiseta com os escritos “Só putaria. Plim Plim”; uma alusão ao rico conteúdo transmitido pela rede Globo de televisão. Ele sabia muito bem unir as leituras com o que presenciava em suas viagens. Mas esse lado filósofo do tio Henrique era algo que, provavelmente, só os mais próximos reconheciam. O marcante e mais aparente era mesmo sua brutalidade; seu jeito meio Shrek de ser. O que já se constitui como uma boa pista para desvendar seu apelido na cidade.

Além disso, essa brutalidade do tio não era presente somente em sua aparência, mas em suas atitudes. Não tinha medo nenhum de xingar alguém que lhe contrariava e muito menos de arrotar e peidar em público. Certa vez, reuniu todos os sobrinhos na sala de casa e, com um maçarico bem posicionado, provou empiricamente que flatulências são perigosamente inflamáveis. Ao mesmo tempo em que era bruto, era muito sarrista e divertido; do tipo que mete o pé na porta dando risada, sem vergonha de ser feliz.

Não levava desaforo para casa, também. Seus irmãos contam da vez em que, num bar da cidade, um “maluco” (sendo fiel à terminologia pela qual a história foi contada) pulou em sua frente e começou a manusear um nunchakos, arma de luta mais conhecido como “tchako” aqui no Brasil, somente para provocá-lo. Henrique meteu a mão na arma, imobilizando-o, e simplesmente disse: “minha vez”. Não é preciso nem contar o que aconteceu com o “maluco” depois disso. Essa é só uma das várias histórias de pancadaria do tio Henrique.

Outro exemplo que mostra essa mistura de brutalidade com loucura do tio, no sentido divertido e destemido, era como ele apelidava suas armas brancas; que utilizava como defesa preventiva em suas viagens. Todo caminhoneiro sabe que, encontrando-se todo tipo de coisa nos postos e paradas desse país, deve- se proteger bem. Para a sua proteção, tio Henrique possuía quatro armas: o “amansa-loco”, nome bem sugestivo para um pedaço de pau envernizado parecido com um taco de bets; o “espirito de luz”, um cajado de marfim que ele garantia que, através de uma porrada, o sujeito encontraria a luz celestial e Jesus; o “exorcista”, um facão que dispensa explicações; e finalmente, o estilingue. Alguns poderiam questionar se o estilingue não seria uma arma fraca e infantil em relação à brutalidade de Henrique ou mesmo às armas já citadas. Bom, basta perguntar isso a quem realmente viu aquele curioso e singular estilingue. Quanto ao “corpo” da arma, normal, nada demais. Qualquer criança a identificaria. O grande diferencial daquele estilingue era a espessura da borracha responsável pela força do lançamento do projétil. Aquela borracha era tão espessa que nenhum sobrinho conseguia esticá-la. Quando perguntado sobre que tipo de munição o tio usava naquilo, ele dizia, para a surpresa dos sobrinhos, que bolinha de gude não era boa. “Bom mesmo é porca de caminhão”. Dói só de imaginar uma daquelas nas costelas.

Através dessas histórias e traços de personalidade do tio Henrique, pode-se já ter uma idéia do por que ele era conhecido como “cachorro loco” na cidade. Esse apelido remete a um animal, louco porque destemido e sem meios-termos. Mas, isso é só a casca, superficial, do significado que esse apelido potencialmente revela.

Além de tudo isso, há um certo momento na vida de Henrique que pode revelar mais sobre esse apelido. Mais especificamente, pode-se fotografar um exato momento e ver esse apelido lá, acenando, pairando na imagem; quase que nos convidando para desvendar seu significado.

Um dos sobrinhos de Henrique tinha um cachorro da raça rotweiller, chamado Max. O cachorro, á primeira vista, era assustador. Bruto e latindo ameaçadoramente, Max botava medo em qualquer um. Entretanto, depois de passar uns dias com o cachorro, conversando com ele e alimentando-o, qualquer um poderia ser amigo de Max.


Mesmo Max sendo o cachorro do sobrinho, o tio Henrique tinha uma especial relação com o animal. Talvez por nunca ter tido filhos, Henrique cuidava de Max como um. Brincava, conversava, dava banho e, quando ia correr pela cidade para se exercitar, levava Max junto, passear.

Ora, o momento que deve ser fotografado na vida do tio Henrique para se chegar mais perto do potencial significado mais profundo de seu apelido, e torná-lo evidente, é justamente quando ele brincava com Max. Ou seja, quando sua relação com o cachorro aflorava e era mais perceptível.

Quando brincavam nos fundos de casa, Henrique e Max, os dois brutos, pareciam estar lutando jiu-jitsu. Os dois rolavam no chão como dois animais numa luta selvagem. Mas, tal brutalidade era mais aparente do que real. No fundo, aquela relação era a pura amizade que se manifestava na brutalidade, num animalesco alegre. Ao se fotografar os dois rolando no chão, divertindo-se com a luta de brincadeira, obtém-se uma imagem. É justamente essa imagem que torna evidente o apelido, fazendo emergir seu mais profundo e belo significado.  Afinal, se se olhar para essa foto, dos dois rolando no chão, e se perguntar “quem é o cachorro loco nessa imagem?”, fica difícil responder.

domingo, 5 de dezembro de 2010

"Mudar implica cortejar a morte"


Assim mesmo, com a frase do título desse post, Luiz Eduardo Soares nos surpreende em um de seus textos publicado no livro Cabeça de Porco. Genial como sempre, Soares transforma os temas cotidianos, os problemas de nosso dia-a-dia, em novas narrativas, como explica o filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. Nesse caso, assim como em Elite da Tropa, o problema da violência como discussão crítica é retirado da linguagem pouco acessível das academias e é narrado em obras que, diferentemente de artigos acadêmicos, que são publicados em revistas que ninguém lê, viram bestsellers

Ao tratar da dificuldade que temos em acreditar que um ex-traficante possa se transformar num cidadão digno, Soares nos aponta para uma grande contradição em nossa sociedade: ao mesmo tempo que clamamos por mudança, dos outros e de nós mesmos, somos resistentes e conspiramos contra essa mudança. Pelo nosso desejo de essencializar as coisas, de nos prendermos aos seguros e confortáveis estigmas, é que por mais que um criminoso pague seu débito com a sociedade e se transforme num verdadeiro cidadão, sempre o trataremos como bandido, querendo coloca-lo de volta em seu lugar. Ao estigmatiza-lo, ao negar-lhe as oportunidades e fechar-lhe as portas e a cara, por conta de sua biografia criminosa, estaremos conspirando contra sua mudança, quase que o forçando a ser um bandido novamente para que possamos estigmatiza-lo de novo, confortáveis de que nada mudou.

Apesar de nós sempre reproduzirmos o discurso de que a mudança é boa, de que devemos mudar, existem duas coisas que conspiram contra a mudança. Uma dessas coisas diz respeito ao próprio individuo que quer mudar. Para qualquer um, mudar é difícil, doloroso e angustiante porque implica em “cortejar a morte”; ou seja, ao mudarmos, estamos abandonando uma forma antiga nossa de ser, assassinando-a. A outra coisa diz respeito às instituições que deveriam promover a mudança e a transformação, mas no fundo acabam sendo resistentes a elas, como a família e a escola, por exemplo.

Soares nos da o exemplo do aluno que é estigmatizado por ser “o atrasado” e “dar trabalho”. A escola o pressiona por uma mudança de comportamento. Entretanto, se por ventura um dia esse aluno toma uma atitude transformadora, de chegar no horário à aula, logo a professora o reprimirá com os seguintes dizeres, na frente de toda a turma: “Chegando na hora, fulano? Que milagre, eim. Vai chover!”. Ao tomar uma atitude transformadora, o aluno gostaria de ser tratado como qualquer outro aluno ou, no limite, receber um reconhecimento discreto por sua boa atitude, mas tudo que a professora faz é coloca-lo de volta em seu lugar supostamente imutável, reproduzindo o estigma posto sobre ele, acusando sua boa atitude de “acidente”, visto que, pelo estigma, esse aluno seria essencialmente atrasado.

Ora, não é preciso ir longe para percebermos que esse paradoxo da mudança em nossa sociedade é visível. Além do exemplo do bandido e do aluno, qualquer um que já tenha tentado uma transformação radical em sua vida deve ter sentido as pressões contra a mudança vinda dos setores mais íntimos e inimagináveis possíveis, justo aqueles que proclamavam pela transformação: amigos e familiares. A família e as amizades são aquelas pessoas que mais deveriam apoiar as boas mudanças em nós, entretanto, às vezes muito sutilmente, nos pressionam de volta aos velhos estigmas e essencializações construídas sobre nós ao longo da vida nesses relacionamentos. É o caso do nerd ou do menino gordo que, mesmo depois de anos, já mudado, encontra com os velhos amigos e se sente como na infância, preso em seu estigma colegial, com ninguém o levando a sério. Também é o caso do “filhinho da mamãe”. Não importa o quanto um homem tenha crescido e se tornado o chefão, ou “durão”, ao lado de sua mãe esse homem será sempre constrangido a ser o “filhinho da mamãe”. Como no caso da professora, os outros resistem às nossas transformações assim como resistimos às mudanças dos outros.

Com toda essa conspiração, mudar fica mais difícil ainda. Além de cortejar a morte, quem muda deve resistir contra os fantasmas de sua biografia, que o assombrarão mais do que nunca na forma de velhos e assustadores estigmas.

domingo, 28 de novembro de 2010

Ser verdadeiramente hedonista é bom

Não raro, escutamos o uso do termo hedonista em seu sentido pejorativo para se criticar o brasileiro ou alguém em especifico. Nesse sentido pejorativo, ser hedonista significa buscar o prazer egoisticamente, ser desmedido na busca do prazer, curtir a vida superficialmente sem ligar para as consequências. Entretanto, o hedonismo, surgido na filosofia grega, helênica, com Aristipo, e que veio a culminar no Epicurismo, do filosofo Epicuro, nos ensina coisa um pouco diferente.

Para tratar desse tema, começaremos com a filosofia de Aristipo que, reflentido sobre a ética, ou seja, sobre a melhor maneira do ser humano viver a boa vida, afirmava, diferentemente dos estóicos e cínicos, que não deveríamos somente suportar a dor, mas tira-la do caminho. Para Aristipo, o prazer era o bem supremo e a dor o mal supremo. Epicureu, seguindo esse pensamento, desenvolveu a ética do prazer de Aristipo e fundou a escola filosófica do Epicurismo. Até aqui, poderíamos associar o sentido pejorativo de hedonismo com a busca máxima pelo prazer, mas Epicuro nos ensina que o hedonismo é algo diferente.

Epicuro ensinava que o resultado prazeroso de uma ação sempre deve ser ponderado em relação a seus efeitos colaterais. Isso significa dizer que alguém que se satisfaz com um chocolate, ou com vinho, por exemplo, deve ponderar o prazer de acordo com os efeitos colaterais dos excessos advindos do consumo desmedido dessas duas coisas. Muito chocolate dá dor de barriga, muito vinho deixa bêbado e causa a ressaca. Sendo assim, o verdadeiro hedonista pondera suas ações com vista a obter o máximo de prazer evitando a dor. Um verdadeiro hedonista nunca se entupiria de chocolate ou faria sexo não ponderado visto que ele deve evitar a dor vinda dos efeitos colaterais de tais ações. Portanto, o epicurismo resulta numa obtenção máxima de prazer mas, mais do que isso, no controle do desejo. Ser um epicureu, ou um hedonista, implica em não ser desmedido.

Além disso, Epicuro nos alerta para o fato de que o “prazer” de que ele trata não se refere necessariamente à satisfação dos sentidos (como comer um chocolate). Os valores gregos que propiciam um prazer a longo prazo, a temperança, a sinceridade e a amizade, acabam sendo mais importantes que os prazeres imediatos.

Mais tarde, epicureus, refletindo sobre a própria filosofia de Epicuro, criaram um lema: “Viva o momento!”. Esse lema, como podemos ver, tem suas relações com a idéia de Carpe Diem, do arcadismo. Essa frase também recebe algumas significações estranhas ao seu contexto literário, como se “aproveitar o dia” ou a vida, tivesse a ver com curtir os prazeres efêmeros. Ou quando uma mulher tatua em seu lombo “Carpe Diem” e isso acaba sendo associado à busca de prazer e sexo sem consequências, como no sentido pejorativo de hedonismo. No limite, se transforma numa justificativa para a busca dos prazeres egoísticos que geram dor. Na realidade, Carpe Diem é uma retomada do pensamento greco-românico, heleno, que tem suas relações com a ética, com viver a boa vida, como no Epicurismo. Por isso, deve-se ter em conta a ponderação.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Ônibus 174, Tropa de Elite e o complexo problema da violência no Brasil

Sem sombra de dúvidas, considero que Tropa de Elite foi um dos melhores filmes já produzido no Brasil. José Padilha acertou em cheio. Com o primeiro Tropa de Elite chamou a atenção e com o segundo, estourando nas bilheterias, conseguiu trazer á tona a complexidade do problema da violência no Brasil através da ficção (ou nem tão ficção assim).

Não me levem a mal quando falo isso. O primeiro Tropa de Elite foi muito bom, mas muito mal interpretado, na minha opinião. Quando o primeiro filme saiu, escutei pessoas enaltecendo o BOPE como solução para a violência, afinal, tinha “que matar tudo mesmo”. Isso sem falar de Luciano Huck, que teve seu rolex roubado e perguntou onde estava o capitão Nascimento, como se a solução para a violência no país estivesse simplesmente em ter BOPE’s por todo país. Do outro lado da moeda, também de forma equivocada, alguns chamaram Padilha de fascista, acreditando que ele estava propondo que o BOPE, não corrupto e assassino, fosse a solução para o problema. Outros trabalhos mostram que todas essas posições são equivocadas.

Tanto o documentário Ônibus 174, de Padilha, como o livro Elite da Tropa, de Luiz Eduardo Soares (antropólogo), André Baptista (BOPE) e Rodrigo Pimentel (BOPE), podem provar que essas duas interpretações do primeiro Tropa de Elite estão equivocadas. Além disso, o próprio Tropa de Elite 2 também cumpre essa função. A verdade é que o BOPE existe porque a violência no país existe de maneira brutal; mas isso não significa que o BOPE sozinho, com sua matança e torturas, seja a solução. Como nos mostrou Tropa de Elite 2, o buraco é muito mais embaixo. Não só a corrupção humana, como a corrupção estrutural, do próprio sistema, com suas contradições e rearranjos, fazem emergir a violência.

Ônibus 174, que inclusive contou com a participação dos autores de Elite da Tropa, procura reconstituir, através de depoimentos e documentos, a vida de Sandro, sequestrador de um ônibus no Rio de Janeiro. O acontecimento teve cobertura ao vivo na época e mereceu manchetes de vários jornais. A grande questão nesse sequestro era que Sandro não tinha nenhum pedido concreto e ninguém sabia suas motivações para sequestrar o ônibus. Parecia, na época, simplesmente uma pura maldade natural de Sandro, que alguns jornais e revistas da época compararam com o demônio. Mas, ao reconstituir a vida do sequestrador, descobre-se que, quando criança, Sandro viu a mãe ser esfaqueada, virou menino de rua e sofreu dessa dura realidade, dos meninos de rua como meninos invisíveis. Além disso, foi parar no instituto Padre Severino, um “depósito humano mirim”, onde, junto com outros meninos, apanhou e se revoltou mais ainda. Foi preso também.

Enquanto esses momentos da vida de Sandro vão sendo descobertos, Padilha vai mostrando a dura e brutal realidade de cada momento. Desde o que implica ser um menino de rua até a situação desumana da cadeia, que em vez de recuperar os presos, só os tornam mais revoltados e violentos. Tão tristes e violentos são esses momentos da vida de Sandro que, no final das contas, acabamos sendo compreensíveis com ele. Acabamos chegando a conclusão que a solução policial para os “Sandros” pelo Brasil é somente superficial, imediata. Para resolver o problema da violência é preciso resolver as contradições sociais e situações concretas pelas quais os “Sandros” se tornam violentos. Isso inclui a miséria, a invisibilidade dos meninos de rua, a desumanização dos institutos de recuperação e da cadeia.

Por isso tudo, o crime e a revolta por parte dos setores miseráveis, ignorados e negligenciados da sociedade chega a ser, em certo ponto, compreensível. Deve ser passível de punição, obviamente, mas antes de tudo é preciso se pensar em resolver a violência que emerge dessas situações negligenciadas não com mais opressão, mas sim resolvendo-se as próprias situações. A polícia, sendo uma função necessária para a sociedade, precisa ser mais valorizada. Outro problema é quando a corrupção e o crime são praticados por setores não miseráveis que acabam, além de tudo, sustentando e financiando ainda mais o crime, como os políticos corruptos e a classe média financiadora do tráfico. A própria banda podre da polícia, com o tráfico de armas e as milícias, no Rio de Janeiro, é um grande problema. Como disse Cap. Nascimento: “O que me fode é quem tem oportunidade e entra pra essa vida”.

sábado, 13 de novembro de 2010

O que diabos é Ideologia?

“Ideologia, eu quero uma pra viver”

A primeira vez que me incomodei com o termo ideologia foi aos catorze anos ao tentar interpretar a música de Cazuza. Sempre que tentava uma interpretação para o refrão não conseguia nada de inspirador. Era preciso buscar os possíveis significados da palavra ideologia para, somente daí, poder começar a construir uma boa interpretação para a música.

Minha primeira tentativa, realizada já naquela época, foi o dicionário. Segundo o dicionário Aurélio, Ideologia significa:

1. Conjunto de idéias que tem por base uma teoria política ou econômica.
2. Modo de ver próprio de um individuo ou de uma classe.

Tendo isso em mente, tentei novamente dar um sentido para o refrão de Ideologia. O resultado foi que não achei sentido nenhum e passei um bom tempo sem pensar nisso. Nenhumas das duas definições do dicionário me deram uma boa sustentação para apreciar Cazuza.

Mais tarde, eu percebi que essas duas definições do Aurélio são curiosamente relacionadas com as noções de ideologia para o senso comum. Para o senso comum, ideologia pode significar duas coisas:

1. Visão política ou partidária.
2. Visão de mundo.

Ora, podemos ver que há uma correspondência entre o que o senso comum entende por ideologia e as definições do Aurélio. Nesse contexto é que podemos dizer que a ideologia (visão política) de fulano tende para a esquerda ou que as ideologias (modos de ver o mundo) de duas pessoas podem ser diferentes. Entretanto, quando tentamos significar o refrão de Cazuza com essas duas definições, algo parece estar fora do lugar. Isso significa que precisamos ir mais a fundo, para os conceitos específicos de ideologia. Na obra Introdução à Análise do discurso, de Helena Brandão, é trabalhado um breve histórico do termo que nos elucidará para essa questão.

O termo ‘ideologia” surgiu, segundo Marilena Chauí, com o filósofo Destutt de Tracy em uma teoria que buscava  analisar, com métodos rigorosos, científicos, a faculdade de pensar. Com Napoleão, “ideologia” passou a ter um significado pejorativo visto que ele criticava os ideólogos franceses (pensadores da ideologia) por conferirem um risco ao poder, desconhecendo os problemas concretos e sendo abstratos, nebulosos demais.

Em Marx e Engels, o conceito de ideologia ganha bastante força e continua carregado de um significado negativo. Tal como Napoleão criticara os ideólogos franceses, Marx e Engels criticavam os filósofos alemães pela “maneira de ver abstrata e ideológica”. Aqui, a ideologia é “identificada com a separação que se faz entre a produção das idéias e as condições sociais e históricas em que são produzidas”. Em outras palavras, a ideologia seria a produção de idéias, “visão de mundo”, desvinculada da realidade material, concreta. Um exemplo disso é quando dizemos que uma coisa “na teoria é muito bonita, mas na prática não funciona”. Ou seja, estamos dizendo que a teoria ficou tão abstrata que só no campo das idéias ela faz sentido, pois fugiu da realidade.

Para Marx, a classe dominante, aquela que domina os meios materiais de produção, possui as idéias dominantes da época. Para poder dominar, essa classe se utiliza de um instrumento de dominação: a ideologia. Aqui, a ideologia ganha um significado que tem a ver com ilusão, com o mascaramento ou inversão da realidade. Para que a classe dominada permaneça dominada, ela precisa estar sobre o efeito da ideologia, dessa abstração que mascara as contradições da realidade. Ela, a ideologia, seria uma ilusão que se faz de verdade, "amenizando" as contradições sociais. A ideologia faz com que acreditemos, por exemplo, que pobre é pobre porque é “vagabundo”. Ou mesmo que se trabalharmos o bastante seremos inevitavelmente ricos e, conseqüentemente, felizes. Na realidade, vemos que nenhuma dessas duas coisas é verdade absoluta, ou natural, mas continuamos a acreditar fielmente nelas. Isso é ideologia. Para Marx, a ideologia é o conjunto de representações e idéias da classe dominante que se impõem sobre a classe dominada, funcionando como instrumento de dominação.

Mais pra frente, outros conceitos de ideologia, que levarão em conta não só funções negativas como positivas, virão. Ideologia para Ricoeur, por exemplo, tem função tanto de integração e coesão social, como de dominação, podendo ser positiva e negativa; portanto, teria mais afinidade com a definição de que ideologia é uma visão de mundo de uma classe, não só da classe dominante. Em Althusser, a ideologia tem a função de "transformar" indivíduos em sujeitos, sendo a-histórica.

Nesse ponto, creio que, para interpretar o refrão de Cazuza, o conceito de ideologia de Marx pode ser relevante: a ideologia como ilusão. Como podemos perceber na música Ideologia, temos um eu - lírico que está desiludido. Seu “prazer virou risco de vida”, seus “heróis morreram de overdose” e seus “sonhos foram todos vendidos”. Como viver nessa situação, desiludido em meio a uma realidade contraditória e cruel? O eu-lírico pede por uma ideologia para viver pois, em confronto com a realidade, só esta tendo infelicidades. Assim, a ideologia seria uma espécie de "ilusão necessária", já que a realidade se torna, por vezes, dura demais para nós. Entretanto, uma outra interpretação, talvez mais inspiradora, também é possível. Estando esse jovem "em cima do muro", ele brada por uma ideologia em seu sentido positivo, ou seja, um sistema de crenças e idéias que lhe permita, após as desilusões, pensar por si mesmo o mundo.

sábado, 6 de novembro de 2010

A Mulher Pura

Ao estudar a análise do discurso nos deparamos com certas idéias muito interessantes. Uma delas, a que mais me chamou a atenção, é a concepção de que os significados são determinados pela ideologia e pela constituição histórica do sujeito. O que isso quer dizer em termos mais simples? Que as palavras e as coisas não significam em si mesmas, não têm significado natural ou literal.

Ora, isso explica porque certos discursos, de tanto serem repetidos, viram verdades absolutas e são “naturalizados”. Por exemplo, quando falamos no conceito de criança, logo imaginamos uma criança inocente, frágil, que necessita de cuidados e educação. Entretanto, nem sempre foi assim. A criança, muito antes do Emilio de Rousseau, era pensada como um pequeno adulto. Portanto, quem criou o conceito de criança inocente fomos nós em algum momento da história. Mesmo assim, estamos tão habituados com esse conceito de criança que achamos que ele é natural, que sempre foi assim. Aí surge a psicanálise e nos diz que a criança pode ser perversa, chocando-se com nosso conceito “natural” de criança inocente, e um novo conceito de criança surge, menos inocente. Assim segue a história.

Nesse ponto é que devemos questionar certos “conceitos naturais” que já estão ultrapassados, como o conceito de criança inocente, porque eles já não estão dando conta da realidade. Um caso emblemático nesse sentido é o conceito de “mulher pura”, da suposta superioridade da mulher que se assemelha à criança, inocente, pura, virgem e submissa. Não sei dizer quando essa idéia de “mulher pura” começou, mas ela ainda tem seus resquícios atualmente. Muitos de nós ainda sentimos, ou mesmo só reproduzimos no discurso, que mulher boa é mulher pura.

Nos dias de hoje, com as vitórias diárias das mulheres na luta pela igualdade e liberdade, pelo direito à diferença também, essa história de mulher pura já devia ter ido pro brejo, mas incrivelmente ela está aí ainda. A maior prova disso são os tipos de cobrança e expectativas que nós, homens, fazemos e temos sobre as mulheres. A essa altura do campeonato, sabemos muito bem que, assim como nós, as mulheres podem fazer sexo com vários parceiros; estarem compromissadas e, ao mesmo tempo, sentir atração por outros homens; utilizarem da manipulação na sedução; conversarem com as amigas sobre diversos homens; e finalmente, não serem submissas.

Sabemos disso. Vemos todos os dias. Contudo, não aceitamos. Continuamos insistindo, inocente e estupidamente, que mulher boa é mulher pura, mesmo que o mais perceptível na realidade não seja isso. Acreditamos que para nós, homens, tudo bem fazer tudo aquilo citado acima. Esse é o “natural”. Mas, a mulher não pode. Homem cafajeste é “natural”, assim como a mulher pura o é. Qualquer coisa que fuja disso deverá ser duramente reprimida.

Agora, não só os homens caem nessa armadilha. Por estarem no meio da sociedade da mulher pura, algumas mulheres fazem teste de pureza, colocam anéis de pureza e, quando num “rolo”, discursam para o pretendente sobre sua pureza como mulher, como se isso fosse uma grande qualidade. No fundo, o pretendente sabe que essa qualidade só é boa perante a sociedade, porque entre quatro paredes a pureza é como a cor bege, brochante.

As mulheres não puras, que vejo todos os dias, essas sim são as mulheres de verdade, superiores. Elas não se dizem produtos da ilusão ingênua da pureza.

Se tudo isso é verdade, se o conceito de mulher pura está longe de representar a realidade e, pior que isso, representa um tipo de mulher fraca, já passou da hora desse conceito cair por terra e ser “desnaturalizado”. Mulher pura não é natural, nem poderosa, nem livre e muito menos sexy.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O tema do aborto (ou seria "o tema da vida"?)

No segundo turno das eleições desse ano, o tema do aborto surgiu com uma força avassaladora. Tanto Dilma quanto Serra, ás vezes podendo até contrariar suas reais posições sobre o tema, ficaram um tanto em cima do muro. Um falava de descriminalização, o outro de “questão de saúde pública”, mas ambos sabiam que, para a candidatura deles, aquela não era uma boa hora para se discutir o tema. Assumir posições rígidas naquele momento poderia resultar num “suicídio eleitoral”. Somente agora, com Dilma eleita, é que essa discussão não só pode como deve ganhar força.

Há cerca de sete meses, o programa Hora da Coruja, do filósofo Paulo Ghiraldelli Jr., convidou o Dr. Hélio Bicudo para um debate sobre esse tema. Procuramos, com o intuito de somar algumas perspectivas, elencar alguns pontos interessantes e questionamentos que surgiram durante esse programa de filosofia.

Um dos primeiros pontos que chama a atenção, já nos primeiros minutos do programa, é a preferência que Ghiraldelli demonstra ao chamar o “tema do aborto” de “tema da vida”. Afinal de contas, discutir aborto deveria ser, antes de tudo, discutir a própria vida. Por quê? Veremos.

Do ponto de vista estritamente legal, argumentou Bicudo, já há um problema. Enquanto para a constituição brasileira de 1988, por versar sobre o direito à vida e sua prevalência, o aborto seria crime, passível de punição; para o código penal de 1941 existiria o “aborto legal”, em caso de estupro ou risco de vida. Portanto, esse código estaria desatualizado com relação à constituição. O mais importante nesse contexto seria destacar que a vida é um direito fundamental.

Se tomarmos o direito à vida como direito fundamental, gerador de todos os outros direitos, a questão do aborto no quadro atual fica extremamente complicada. No caso de risco de vida, onde se deve escolher entre a vida da mãe e a da criança, estaríamos defendendo a vida mais provável de ser salva em detrimento da outra. Faz mais sentido salvar uma vida do que sacrificar duas. Até aí tudo bem, isso de certa forma faz sentido para nós. A coisa complica, de verdade, no caso de estupro, onde, durante a gestação, pode não haver risco de vida nem para a gestante, nem para a criança. Nesse caso, a vida da criança seria sacrificada pelo trauma da mãe. Seria isso certo? Não haveria outras soluções que não o aborto nesse caso? Complicado dizer. Afinal, essa é uma experiência muito forte para uma mulher e isso deve ser levado em consideração.

Outra discussão que permeia o tema do aborto é a questão do início da vida. Afinal de contas, onde a vida começa? Se ela começa em determinado tempo “x”, o aborto poderia ser feito antes disso? Bicudo argumenta que alguns bioéticos defendem que a vida começa na concepção. Se não for assim, isso daria margem para um marco “retórico” da vida que seria sempre mutável. Assim como décadas atrás nós só morríamos “oficialmente” quando o coração parasse, e hoje isso se dá quando há morte cerebral, no caso da vida estaríamos sempre discutindo o momento inicial da vida e, conseqüentemente, a melhor hora para se abortar.

Além disso, no Brasil, hoje, é possível perceber duas posições, a grosso modo: de direita e de esquerda. A esquerda defende, no limite, a legalização do aborto com um argumento que tem afinidade com o feminismo e com o conceito de liberdade. A mulher, com o direito de liberdade sobre seu corpo, poderia decidir sobre o aborto. Já a direita levanta a bandeira da vida. Defende que aborto é um crime contra a vida e deve ser punido. Estaria uma delas certa? Tendo em vista que a vida é um direito fundamental, e que ela começa na concepção, como poderíamos questionar esses posicionamentos de direita e esquerda?

Pelo lado da esquerda, concordamos que a mulher tenha liberdade sobre seu corpo. Mas, se isso implica numa decisão de aborto, não estaríamos tomando o feto como uma simples extensão do corpo da mulher, e não como outra vida? Pelo lado da direita, como vimos, é feita uma defesa à vida, o que é plausível segundo nossos pressupostos. Mas essa defesa esta baseada em um conservadorismo que acarreta certas contradições feias de se ver. Por exemplo, defende-se a criminalização do aborto, com vistas à defesa da vida, mas, ao mesmo tempo, luta-se pela pena de morte. Por isso, essa defesa da vida parece estar mais baseada em valores conservadores do que na discussão filosófica da vida e do direito fundamental à vida. Nesse contexto, podemos dizer que a esquerda pode estar atentando contra a vida quando faz prevalecer a liberdade da mulher em detrimento da vida da criança, enquanto a direita defende a vida sustentando-se em valores duvidosos, por vezes destrutivos.

Nesse ponto fica claro que, com esses questionamentos, discutir o aborto é, antes de tudo, discutir a vida, seja pensando a vida como direito fundamental, seja com dúvidas bioéticas. Acreditamos que esse seja o melhor caminho para se pensar o aborto. Nem fazendo-se prevalecer a questão da liberdade, nem os valores conservadores.

domingo, 31 de outubro de 2010

Namoro líquido?

“Eu quero um relacionamento, um namorado; mas não quero me sentir presa”. Já não é a primeira vez que eu ouço um desabafo de uma amiga nesse sentido.

O que tem de tão interessante nessa frase? Ora, ela é a perfeita representação de um conflito que Zigmunt Bauman, sociólogo, apontaria como típico do individuo na modernidade líquida. Querer estar num relacionamento, que envolve a abdicação de certas liberdades e, ao mesmo tempo, querer ser totalmente livre, é coisa de gente do nosso tempo. Para entender esse conflito, é preciso começar pela própria idéia de modernidade liquida. Esse primeiro momento, de explicação do que é modernidade liquida, pode parecer meio cansativo, mas compensa para entendermos nossos conflitos quando o tema é relacionamentos.

Para Bauman, o momento em que estamos é o que ele denominou de modernidade liquida. Na verdade, o que mudou foi a modernidade sólida, ou seja, aquela em que nos baseávamos em valores e instituições sólidas próprias da modernidade, vindas das revoluções burguesas e do iluminismo. Hoje, essas instituições e valores são líquidos, fluidos. Significa dizer que já não nos apoiamos em coisas sólidas. Isso pode ser visto na chamada “quebra das instituições”. Casamento, família e igreja já não são instituições tão firmes e delineadas como antigamente. Além disso, as idéias de individuo e liberdade entram em conflito.

Em várias de suas obras, que estão mais para ensaios, Bauman investiga justamente isso: de que forma essa modernidade liquida tem se refletido em nós. Uma dessas obras ele intitulou de “amor liquido”. Aqui, encontramos inícios de respostas para o conflito do ínicio do texto. Bauman defende que essa condição da modernidade liquida tem fragilizado os laços humanos; o amor não é mais solido, ele é liquido.

O sociólogo argumenta que, na contemporaneidade, temos pensado várias coisas em termos de investimento. O que era algo típico da economia foi transposto para as relações humanas. Pensamos os relacionamentos em termos de investimento. Sendo assim, começa a fazer sentido dúvidas como “será que compensa casar?” ou “será que vale a pena ter um filho?”. Estar em um relacionamento, e sabemos muito bem disso, tem seus custos e benefícios. A minha amiga citada no começo do texto também sabe disso. Ela sabe que é um beneficio ter alguém para lhe dar carinho, mas que isso provavelmente lhe implicará um custo, sua liberdade (se é que isso existe mesmo).

Aqui, podemos começar a fazer uma conexão dessa idéia com várias conflitos e fenômenos típicos do nosso tempo. Por exemplo, a fase “solteiro”, fase “namoro”. Dizemos que estamos sempre alternando essas fases porque, no conflito vindo da idéia de investimento, uma hora vemos que o beneficio está em ficar solteiro, em outra, estar namorando. Podemos enxergar isso no número de divórcios, que aumentou incrivelmente nos últimos tempos e agora tem diminuído novamente.

O próprio “ficar” é uma forma de tentar resolver esse conflito do custo/beneficio dos relacionamentos. Ficar com alguém nada mais é do que obter muitos benefícios, os carinhos e beijos, e deixar para lá os custos vindos do relacionamento “sério”. Nesse sentido, poderíamos cair na armadilha de pensar que “ficar” seria uma boa solução sempre. Entretanto, na modernidade liquida, o relacionamento duradouro é liquido, uma hora ele é predominantemente custo, outra é predominantemente beneficio. Assim, o ficar passa a implicar custos, que agora é o fato de que não se tem algo duradouro com o outro, e namorar acaba virando uma boa opção. Pode parecer frio demais pensar que fazemos isso, custo/beneficio, com outras pessoas. Mas, esse seria mais um conflito do nosso tempo.

Ficar, namorar ou casar? Depende. Pelos nossos valores não serem mais sólidos, essa é a melhor resposta que nós, da modernidade liquida, temos para todos os conflitos: “depende”. É muito conflito e liquidez pra nossa cabeça.

PS: Indo um pouco além de Bauman, eu não levantaria o conceito de investimento. Planejamento me parece uma idéia melhor. Quando a modernidade surgiu, começamos a planejar tudo para alcançar nossos objetivos. Essa forma de pensar planejada se transpôs para os relacionamentos humanos, fazendo com que nossas escolhas com o objetivo nada claro de "ser feliz" fossem planejadas. Esses costumes de planejar parecem totalmente racionais, mas não o são, pois já estariam enraizados em nós. Sendo assim, planejamos relacionamentos pensando nos custos/beneficios emocionais de forma até "inconsciente".

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Amor, egoísmo e Nietzsche

Certa vez, um questionamento muito interessante me foi feito por um professor no ensino médio: “Afinal de contas, gostamos de uma pessoa ou gostamos de como ela faz a gente se sentir?”
Pensei alguns minutos e logo achei ter chegado à resposta: gostamos de como essa pessoa faz a gente se sentir.

Entretanto, ao perguntar aos meus colegas, a resposta foi outra: “Não. Gostamos da pessoa.”
Só mais tarde comecei a ver que, na realidade, essa pergunta é muito interessante. Não porque ela aparentemente não tem resposta, mas sim pelo discurso que a envolve. Explico.

Quando meu professor fez essa pergunta, o que pairava como pano de fundo era o tema do nosso egoísmo como seres humanos. É aí que o bicho pega. Ora, se o nosso conceito de amor, enraizado no cristianismo, é altruísta, ou seja, se amar é não ser egoísta, por que só amamos a quem, ou o que, nos faz sentir alguma coisa?

Quando pensamos no ideal de amor ao próximo, ideal cristão, aquele que tem a ver com a solidariedade, até podemos engolir a idéia do amor absolutamente altruísta. Podemos até dizer que esse amor se manifesta quando alguém pratica a solidariedade, ajudando totais desconhecidos, fazendo caridade. Essa idéia de amor  altruísta também se apresenta quando falamos do amor de mãe, que seria incondicional, ou mesmo do amor vindo da amizade. Todos esses exemplos seriam manifestações do amor supostamente altruísta. A caridade, o amor de mãe e a amizade seriam a prova de que o amor, de fato, não é egoísta; não tende para si, só para o outro. No entanto, fica difícil de engolir essa idéia quando falamos do amor que é conseqüência da paixão, o amor dos casais.

Que ataque a primeira pedra quem já beijou alguém por puro altruísmo (com essa idéia enganosa de “sexo por caridade”, tem gente que vai se achar altruísta). Vamos mais longe até: quem já namorou por puro altruísmo? Como diria o filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. “Quem ama o feio, bonito lhe parece. O difícil é amar o feio.”

Paixão vem da palavra pathos, que também originou a palavra patologia, doença. A pessoa apaixonada é uma pessoa enferma de emoção pelo outro; mas quem está enferma é ela mesma. Enferma com a vontade de ter o outro para si, saciando a própria vontade. Nesse contexto, a paixão é egoísta. Por isso, se transferirmos a pergunta anterior para o nível da paixão, ela ficará até ridícula: quem já se apaixonou por puro altruísmo? Quem de nós já gostou muito de alguém conhece o ciúmes, que não deixa de ser uma manifestação egoísta ligada à paixão também.

A partir daqui , podemos dizer que o amor dos casais, que só se manifestará como conseqüência da paixão, só pode provir de algo que é, de certa forma, egoísta: a própria paixão. Quando essa dimensão egoísta do amor acaba, quando não sentimos mais nada perto daquela pessoa, dizemos que o amor acabou. Não vemos sentido mais em ficar com ela, por mais que ela ainda esteja apaixonada por nós. Nesse caso, não há altruísmo; o relacionamento deve acabar. Ninguém permanece com o outro por caridade.

Além disso, se pensarmos nos “amores altruístas” por outros vieses, veremos que eles também têm suas dimensões “egoístas”, querem satisfazer não só necessidades dos outros como nossas. Ora, faz-se caridade não por puro altruísmo, mas por que isso nos faz sentir bem, contribuindo para uma sociedade melhor em que nós mesmos vivemos. Ajudar os outros é ajudar a si mesmo. E isso não é ruim.

Agora, podemos confrontar o que foi dito com as respostas de meus colegas, e minha, à pergunta do professor. Ora, se a dimensão egoísta esta presente em tudo que se diz puramente altruísta, por que meus colegas insistiram em responder que é possível gostar da pessoa, abdicando dos próprios sentimentos? Nietzsche ilumina a questão.

Caso o filósofo estivesse presente, ele diria que meus colegas resolveram a questão segundo pensamentos moralizantes. Sendo nossos valores, culturas e pensamentos profundamente ligados à tradição cristã e ao pensamento de Kant, onde a moral é o Dever do homem, tendemos a moralizar as soluções; a colocá-las em termos de bem e mal. Meus colegas, moralizantes, não podiam aceitar que o amor fosse um ato que fosse parte “egoísta”. Mesmo que isso saltasse aos olhos deles, responderam que se “gostava da pessoa”; pois admitir o oposto seria dizer que um valor do bem, o amor, possuiria um lado supostamente mal, o egoísmo. Essa contradição era inaceitável para eles. Para a nossa cultura enraizada no cristianismo, ser egoísta, fazer as coisas com interesses para si, é ser necessariamente mau. O amor é do bem e, por isso, não é egoísta. Mas será que só pensar nos outros, abdicando-se de si mesmo, é necessariamente "bom" e fazer algo a interesse de si próprio, "egoista", é necessariamente "mau"? 

Aqui, Nietzsche nos convida para ir “além do bem e do mal”. Ele nos convida a parar de pensar em termos dessa dualidade e usar como critério para a valoração, ou avaliação, dos valores, como altruísmo e egoísmo, a própria vida. Ou seja, para ver se o egoísmo e o altruísmo são “bons” como valores, usemos como critério não essa moral fraca, do bem e do mal; mas sim a própria vida. Em outras palavras: “Ser egoísta, ou altruísta, contribui para a exaltação ou para a degenerescência da vida?”

Com essa questão em mente, Nietzsche não ficaria satisfeito nem com a resposta de meus colegas, nem com a minha. Talvez ele até ficasse um pouco satisfeito com a minha. Mesmo assim, não ficaria totalmente satisfeito. Por quê? Porque assim como não podemos pensar altruísmo e egoísmo simplesmente através da dualidade “bem e mal”; não seria coerente achar que altruísmo e egoísmo se excluem.

Ora, uma pessoa puramente egoísta (isso só deve existir no plano da psicopatia), como já é sabido, não dá a mínima para a vida dos outros; portanto, não contribui para a vida na medida em que pode aniquilar os outros em favor de si mesma. Mas, pior que a pessoa puramente egoísta, para Nieztsche, talvez seja a pessoa puramente altruísta, pois ela é capaz de negar a própria vida. Em determinado sentido, ela não exerce sua “vontade de potencia” e aniquila a si mesma. Costumamos achar isso bonito, pois é a mesma idéia do sacrifício de Jesus. O homem puramente altruísta se sacrifica pelos outros e vai para o céu. Para Nietzsche, isso é a decadência, pois dá margem para que o homem sacrifique aquilo que ele tem de mais valor, sua própria vida, terrena, não por puro altruísmo, como Jesus o fez, mas por sua vida no além-mundo, no céu. Além disso, segundo o filósofo, o budismo seria uma religião superior ao cristianismo justamente por voltar para si os interesses espirituais, num certo “egoísmo”. A pura objetividade enfraqueceria o espírito. O budismo incita o respeito tanto ao outro como a si próprio. É uma luta contra o sofrimento de si.

Sendo assim, se todos os nossos atos altruístas são egoístas em certa medida, voltam-se para nós mesmos, e o egoísmo, como necessidade para si, pode ser altruísta quando sustenta a paixão e a amizade, talvez esteja na hora de superarmos essa dualidade entre egoísmo e altruísmo deixando de pensar esses conceitos em termos de bem e mal.

Tendo dito tudo isso, podemos tentar uma boa resposta (se não boa, melhor) para a pergunta do professor. “Gostamos da pessoa ou gostamos de como ela faz a gente se sentir"?

Resposta: “Altruísmos e egoísmos, bem e mal, a parte, não se trata de gostar de uma pessoa ou gostar de como ela faz a gente se sentir. Se trata de gostar de uma pessoa porque ela faz a gente se sentir como gostamos. Gostar do outro é, assim, tanto ‘altruísta’, na medida em que aceitamos, respeitamos e nos doamos ao outro, como ‘egoísta’, na medida em que esse outro vivifica nosso espírito na luta contra o sofrimento. Amar alguém é estender a si próprio no outro”. O amor é um jogo de egoísmo e altruísmo.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

A preguiça do (potencial) bom aluno na universidade

Antes de tudo, é preciso frisar que, diferentemente do que parece, esse texto não tratará da preguiça do mau aluno; aquela tão condenada e pronunciada pelos corredores da universidade. Esse texto é uma tentativa de responder o porquê, muitas vezes, o bom aluno é tentado pela preguiça dentro da universidade.

Roland Barthes, em um ensaio sobre a preguiça, discorre sobre um tipo de preguiça que, ao contrário do que pensamos, é virtuosa. Ele divide a preguiça em feliz e infeliz.

Resumidamente, a preguiça feliz é aquela resultada de uma atividade prazerosa, de lazer. Como por exemplo, curtir a preguiça depois de um jogo de futebol ou num fim de semana. A preguiça infeliz, essa sim nosso alvo aqui, é a preguiça do tipo gerada no “modelo escolar”. O professor, de má vontade, impõe aos alunos que façam uma resenha inútil que, além de tudo, ele mesmo não vai ler.

Sendo assim, a preguiça infeliz é aquela gerada pela revolta. O aluno encara o livro e a folha de papel da resenha, sabe que a atividade é sem sentido, e se recusa a fazer. É nesse contexto que as duas preguiças são consideradas virtuosas. Uma permite o ócio e a outra é gerada pela revolta. Para Barthes, por conta disso, é possível que um aluno preguiçoso seja bom.

Na universidade, é o mesmo caso. Enquanto o mau aluno tem preguiça para todas as disciplinas, o bom aluno sabe o terreno em que pisa. Ele sabe muito bem diferenciar os bons professores, aqueles que realmente irão lhe acrescentar algo e orientá-lo para o bom caminho, dos professores ruins. Ele sente o cheiro de longe.

Os professores ruins não cumprem compromissos, não ministram aulas, ensinam com pretensão aquilo que não sabem e cobram trabalhos sem sentido para “encher lingüiça”. Não raro, cobram seminários para que os alunos dêem aula por ele. O bom aluno sabe diferenciar um seminário construtivo, que gera debate, de um dispositivo preenchedor de lacuna pedagógica. Por isso, por zombar e desrespeitar o tempo e o potencial dos alunos, os maus professores causam a preguiça nos bons alunos, que não veem sentido em perder tempo com o que não irá lhes acrescentar nada.

O que tenho visto na universidade é a preguiça em todos os sentidos expostos aqui. É comum ver bons alunos estudando e assistindo impecavelmente tanto disciplinas difíceis, com bons professores criteriosos, como disciplinas “fáceis” de bons professores. Por outro lado, esses mesmos alunos tem preguiça das disciplinas ministradas por maus professores. Isso é bom e ruim, ao mesmo tempo.

A tão debatida preguiça do mau aluno, aquela gerada pelo “não quer nada com nada”, constitui o lado ruim. O lado que, com razão, os bons professores criticam. Já o lado bom está na preguiça revoltosa dos bons alunos, que não aceitam se submeter à falta de respeito com suas potencialidades. O que me parece coerente nesse contexto é que, assim como os bons professores criticam, com razão, os maus alunos; os bons alunos devem ser mais competentes e mobilizados em suas revoltas para com os maus professores. A preguiça infeliz já é um sinal de revolta, mas não é eficiente. É pouco provável que tenha o poder de mudar a situação.

Bons alunos de todo mundo, uni-vos!

domingo, 10 de outubro de 2010

A melhor desculpa de todas

Foi convidado para uma festa que não quer ir? Cobrado por um trabalho que não fez? Aquela pessoa que você não está afim, mas fica insistindo pra vocês saírem, te jogou na parede com mais um convite e você gostaria de sutilmente recusar? Ora, a melhor forma de se desfazer de tudo isso é com uma desculpa. Mas não qualquer desculpa. Tem que ser uma desculpa estratégica, eficiente, efetiva e eficaz. Uma desculpa que realmente funcione no mundo contemporâneo globalizado. Qual é a melhor desculpa de todas, atualmente? A desculpa com maior probabilidade de funcionar?

“Não tenho tempo”.

No mundo de hoje, é muito fácil aceitarmos a falta de tempo. Caso falte para nós uma desculpa especifica para uma determinada ocasião, “não tenho tempo” é a carta na manga; é o coringa do baralho das desculpas do século XXI. Podemos dizer que alguns de nós realmente não têm tempo e outros somente acham, ou bravejam, que não têm. Isso não importa. Não importa, para o funcionamento dessa desculpa, se verdadeiramente temos tempo ou não. O fato é que essa desculpa funciona mesmo quando temos tempo e ela não passa de uma desculpa. Mas, por que ela funciona tão bem?

Funciona, provavelmente, porque desde as reformas protestantes, e das revoluções burguesas liberais, não só se deu um ponta-pé a respeito da idéia de liberdade do indivíduo, de se definir pela sua vida terrena, como também se fortaleceu a relação entre trabalho e dignidade. Sendo assim, nesse contexto, o individuo não se define pelo seu parentesco, mas sim pelo seu trabalho. O burguês não mais precisava se preocupar em não ser reconhecido por não ter nascido nobre. Tudo que ele precisava era trabalhar o bastante para ser alguém. Hoje, essa idéia ainda perdura. É dentro dessa perspectiva que continuamos a associar tanto valor ao trabalho. Só pode ser alguém quem trabalha. E quanto mais se trabalha, melhor. Sendo assim, tendemos a acreditar que quanto menos tempo uma pessoa tem, por conta de mais trabalho, mais digna ela é.

Somos tão ligados à idéia de “falta de tempo”, e de como essa falta deve ser obrigatória na vida das pessoas, que se alguém nos diz ter tempo, pois não vai fazer nada na quarta-feira a tarde, achamos estranho. Logo fazemos observações sarcásticas do tipo: “eee vida boa, eim!” ou “tá folgado... Trabalhar que é bom, nada, né?”. No mundo de hoje, o normal é não ter tempo. Se se tem tempo, achamos que algo deve estar errado. E pior, achamos que o mundo sempre foi assim. Naturalizamos a idéia do ócio como “oficina do diabo” e do trabalho como poço da dignidade. Sendo assim, aceitamos que não ter tempo é uma boa desculpa, pois isso significa que não estamos ociosos, que estamos trabalhando e, portanto, somos dignos. Por isso, dizer que alguém tem tempo de sobra é, não raro, uma ofensa.

Contudo, será que “não ter tempo”, o que significa estar trabalhando a maior parte do tempo, é sempre algo positivo? Até certo ponto o trabalho dignifica, mas em que momento ele deixa de ser dignificante e se torna exploração, seja por parte dos outros, seja de si mesmo? Em Atenas, o filósofo só podia ser um cidadão, livre, pois o trabalho braçal era função dos escravos e a atividade de filosofar só se concretizava através do ócio. O sacerdócio, por exemplo, é o ócio sagrado. Nesse contexto podemos perceber que o ócio também possui uma função positiva na medida em que ele permite a reflexão, o “parar para pensar”. Portanto, o ócio e o trabalho devem coexistir. É no trabalho que podemos nos tornar úteis para a sociedade e é no ócio que podemos refletir acerca do nosso trabalho, do mundo e de nós mesmos.

Enquanto estivermos associando a “falta de tempo” e, portanto, o excesso de trabalho à dignidade, não teremos tempo para o ócio. Não teremos tempo para a reflexão. Ou seja, estaremos refletindo muito pouco enquanto o “não tenho tempo” for uma boa desculpa, a melhor desculpa de todas.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

O jovem que não é (ou não se acha) jovem

“A juventude está perdida” é uma frase que já deve ter lá uma certa idade... Para não ser politicamente correto, deve ser uma expressão tão velha e passada que já está caducando. Nada mais esperado do que ouvir esse tipo de frase de nossos avós, por exemplo. O problema é quando começamos a ouvir esse tipo de expressão caduca dos próprios jovens.

A definição de jovem é variável. Entretanto, se formos fazer um apanhado das diversas definições que existem por aí e tirarmos uma média, o jovem é aquele individuo com idade entre 15 e 25 anos. Aí é que reside o problema. Tenho ouvido de uma parcela de pessoas com idade entre 18 e 25 anos, portanto jovens, que a “juventude está perdida”. O que é um paradoxo a primeira vista.

O que tem acontecido, me parece, é que a cultura que se constrói e se reproduz no meio escolar, dos 13 aos 17 anos, tem sido diferente da cultura dos jovens de 18 à 25 anos; fazendo com que esses se diferenciem, ou queiram se diferenciar, daqueles. Ou seja, nós, de 22 anos, somos diferentes daqueles de 16 anos. Somos semi-adultos e eles é que são jovens. O que percebemos nesse ínterim é que o conceito de jovem não tem dado conta de diferenciar esses dois segmentos. Os jovens de 22 anos não querem estar no mesmo grupo dos jovens de 16 anos.

Alguns problemas decorrem dessa diferenciação. Um deles é que os “semi-adultos”, para se diferenciar, costumam condenar a cultura dos jovens escolares, numa pretensa posição de superioridade que beira o autoritarismo e o paternalismo; além de ser algo cínico. Talvez o exemplo mais representativo desse tipo de “semi-adulto”, que não se acha jovem, é o vlogueiro Felipe Neto. Com 22 anos, e portanto jovem, Felipe Neto ficou famoso na internet pelos seus vídeos de humor e crítica. Aqui não pretendemos dizer que seu trabalho é ruim, eu mesmo já ri muito com os vídeos do vlogueiro. O problema está no discurso perpetuado por ele e que muitos outros jovens aderem e reproduzem de maneira até ingênua.

Grande parte das críticas de Felipe se direciona aos produtos culturais consumidos geralmente pelo jovem escolar, de 13 a 17 anos de idade. Ele já criticou o livro Crepúsculo e as bandas coloridas, acusando esses produtos culturais de verdadeiros lixos que servem para fazer os “jovens” de “massa de manobra”. Além disso, Felipe Neto costuma perpetuar um saudosismo dizendo que na época dele o bom era Cazuza e Legião Urbana. Músicas de protesto. Não raro, muitos jovens comentam em seus vídeos coisas como “é isso aí! Esses jovens não lêem nada, só escutam porcaria”.

Quais são os problemas desse discurso “crítico” de Felipe Neto? Eu tenho a mesma idade que o vlogueiro, portanto, posso falar que esse saudosismo dele é barato. Nós nascemos em 1988. Bandas como Cazuza e Legião fizeram sucesso quando eu e ele éramos apenas moleques. Mesmo que escutássemos essas bandas, mais tarde os manonas assassinas e etc., muito provavelmente não fazíamos isso por conta do conteúdo crítico das letras, mas sim pelo momento, pelo que tínhamos acessos pelas rádios e por quem convivíamos. Mesmo assim, não podemos descartar, é claro, que as pessoas que, como nós, viveram a adolescência nos anos de 1990, vivenciaram muitos movimentos culturais de massa “idiotas”: backstreet boys, Hanson, é o Tchan... Ao perpetuar esse saudosismo falso, Felipe Neto apaga do discurso os movimentos “idiotas” que ele vivenciou e glorifica as músicas críticas que ele não entendia.

Sendo assim, porque somos tão categóricos ao condenar a “juventude” de agora pelo que eles curtem? Nós mesmos passamos por isso e crescemos. E mesmo tendo crescido, hoje, ainda dançamos funk e sertanejo universitário, cultura de massa, nas festas; o que, em conteúdo crítico, não se diferencia muito de bandas coloridas. Nem é por isso que estamos decaindo, também. Ninguém agüenta manifestações artísticas críticas cem por cento do tempo. Às vezes a melhor solução para uma semana estressante é um filme “babaca” de Holywood. Dizer que Funk e bandas coloridas não são cultura é coisa de gente sem cultura, que não sabe a definição de cultura. Essas pessoas, como Felipe Neto, acreditam que cultura é somente a “alta cultura”, de elite. Por isso têm dificuldade de compreender os jovens escolares e a si mesmos.

Outro aspecto cínico do discurso de Felipe Neto, que chamarei aqui de discurso pseudo-adulto elitista, pois não é um discurso só dele, mas de todos esses jovens de classe média-alta que falam que a “juventude está perdida”, é a questão da leitura. Ao criticar o livro Crepúsculo, esses jovens defendem que os adolescentes deveriam ler Machado de Assis. Como se eles, nós, tivéssem lido e absorvido Machado de Assis com 13 anos. Hoje eu posso me curvar á Machado, mas isso não se daria se, com 13 anos, eu não tivesse ganhado o meu primeiro livro: Harry Potter. Esse livro é uma literatura tão fraca quanto Crepúsculo, mas me iniciou o gosto pela leitura. Nesse sentido, será que adolescentes lendo Crepúsculo é tão ruim assim?

A juventude costumava ser associada à rebeldia. Hoje, o que eu vejo, são jovens passando dos dezoito anos e se tornando mais conservadores que seus pais. Além de não se considerarem jovens por se acharem “críticos”, diferente da parcela mais nova de jovens que seria supostamente alienada, esses jovens não são jovens porque não são rebeldes. Com seu conservadorismo, perpetuam um discurso autoritário onde tudo deve ser como eles ditam. Se não é, “tem que matar esses coloridos!”, “jogar uma bomba na favela!”. Eu só posso esperar que essa onda jovem-fascista, assim como a expressão “a juventude está perdida”, caduque também. Alias, tendo em vista essa parcela pseudo-adulta elitista da sociedade, talvez a juventude esteja perdida mesmo.

Sobre dar Esmola


“Amigo, vim de Brasília para cá e não tenho dinheiro para voltar pra casa, será que você pode me ajudar?”
“Moço, tenho quatro filhos, sou mãe solteira e não tenho dinheiro pra dar comida aos meus filhos, me dá uma ajuda?”

Qualquer um que more na cidade, hoje, com certeza já ouviu algum desses pedidos vindos de algum estranho; seja nas ruas, no portão de casa ou mesmo no ônibus. Aqui em Curitiba é comum que pessoas necessitadas peçam colaborações dentro dos “vermelhões”, ônibus bi-articulados típicos da cidade. Ao ouvir um pedido desses, muitos de nós entram num dilema: afinal de contas, ajudo ou não ajudo?

Esse dilema surge de uma série de conflitos de valores vindos da nossa cultura. Apesar de ser um país laico, a cultura brasileira tem raízes muito fortes no cristianismo. Pelos valores cristãos de solidariedade, de ajuda aos pobres, sentimos que é nossa obrigação ajudar os necessitados. Temos pena e logo pensamos em tirar algumas moedas do bolso. De repente, outros pensamentos começam a impedir que façamos a caridade naquele momento. Ao sentirmos aquela dorzinha no coração, e o medo de sermos punidos e irmos para o inferno, colocamos a mão no bolso e já pensamos: “mas espera aí! Eu preciso desse dinheiro... Trabalhei duro e pago impostos. É dever do Estado cuidar dessas pessoas! Se eu ajudar, estarei simplesmente reforçando que o Estado não faça nada. Além disso, não sei se vão comprar cachaça com esse dinheiro”. Hesitamos.

É aí que o dilema se instaura: se damos esmola, temos a idéia de que estamos alimentando a indiferença do Estado, resolvendo o problema somente superficialmente. Se não damos, não estamos sendo solidários e, além disso, a necessidade dessas pessoas é imediata. A mãe solteira na frente do nosso portão não pode esperar pelo nosso protesto. Por mais que briguemos por políticas públicas que atendam esses indivíduos, a necessidade deles se dá no momento presente, agora. Tendo isso em vista, a questão da esmola se torna extremamente complexa. Devemos não dar esmola, no pensamento de que se deve “dar a vara-de-pescar , e não o peixe”, negligenciando a necessidade imediata dessas pessoas; ou dar esmola, atendendo essa necessidade, mas correndo-se o risco de reproduzir a indiferença por parte do Estado e criando a dependência dessas pessoas para com a caridade?

Essa mesma questão pode ser transposta para a tão discutida bolsa-família. Até que ponto a bolsa-família é uma política democrática, e até que ponto ela é assistencialismo? Questão complicada. Afinal, como diria Betinho na década de 1990 sobre a Ação de Solidariedade Contra a Fome: “não resolve, mas traz uma nova perspectiva”. A bolsa-família também não resolve o problema social da fome, mas traz uma nova perspectiva. Como podemos cobrar cidadania e participação política de um individuo que passa fome? Nesse sentido, o bolsa-família ajuda imediatamente a dar o impulso que essas pessoas precisam para serem reconhecidas como sujeitos, como cidadãs. Mesmo assim, o bolsa-família corre o risco de criar uma relação de dependência caso novas políticas públicas não sejam criadas para resolver o problema. Não compartilho da opinião de que o bolsa-família instigue a “vagabundagem”. Garanto que muitas famílias preferiam trabalhar para ganhar um salário mínimo do que “não fazer nada” e ganhar duzentos reais. Essa quantia não enche a barriga de ninguém.

Pode-se dizer então que somente a história poderá dizer se o bolsa-família é assistencialismo ou não. Tudo depende de, após esses indivíduos necessitados terem recebido a bolsa para no mínimo serem reconhecidos, que a própria bolsa-família e novas políticas sejam criadas, repensadas, renovadas e implementadas daqui pra frente.

Portando, dar esmola ou não? Bolsa-família ou não? Essas são questões que não pretendo responder aqui, mas pretendo desbanaliza-las para que possamos refletir sobre elas. Vale lembrar que não só o Estado tem responsabilidade para com as classes subalternas, mas a sociedade como um todo tem. Essa é a noção de cidadania. Noção que é um ponta-pé inicial para respondermos tudo isso...