domingo, 5 de dezembro de 2010

"Mudar implica cortejar a morte"


Assim mesmo, com a frase do título desse post, Luiz Eduardo Soares nos surpreende em um de seus textos publicado no livro Cabeça de Porco. Genial como sempre, Soares transforma os temas cotidianos, os problemas de nosso dia-a-dia, em novas narrativas, como explica o filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. Nesse caso, assim como em Elite da Tropa, o problema da violência como discussão crítica é retirado da linguagem pouco acessível das academias e é narrado em obras que, diferentemente de artigos acadêmicos, que são publicados em revistas que ninguém lê, viram bestsellers

Ao tratar da dificuldade que temos em acreditar que um ex-traficante possa se transformar num cidadão digno, Soares nos aponta para uma grande contradição em nossa sociedade: ao mesmo tempo que clamamos por mudança, dos outros e de nós mesmos, somos resistentes e conspiramos contra essa mudança. Pelo nosso desejo de essencializar as coisas, de nos prendermos aos seguros e confortáveis estigmas, é que por mais que um criminoso pague seu débito com a sociedade e se transforme num verdadeiro cidadão, sempre o trataremos como bandido, querendo coloca-lo de volta em seu lugar. Ao estigmatiza-lo, ao negar-lhe as oportunidades e fechar-lhe as portas e a cara, por conta de sua biografia criminosa, estaremos conspirando contra sua mudança, quase que o forçando a ser um bandido novamente para que possamos estigmatiza-lo de novo, confortáveis de que nada mudou.

Apesar de nós sempre reproduzirmos o discurso de que a mudança é boa, de que devemos mudar, existem duas coisas que conspiram contra a mudança. Uma dessas coisas diz respeito ao próprio individuo que quer mudar. Para qualquer um, mudar é difícil, doloroso e angustiante porque implica em “cortejar a morte”; ou seja, ao mudarmos, estamos abandonando uma forma antiga nossa de ser, assassinando-a. A outra coisa diz respeito às instituições que deveriam promover a mudança e a transformação, mas no fundo acabam sendo resistentes a elas, como a família e a escola, por exemplo.

Soares nos da o exemplo do aluno que é estigmatizado por ser “o atrasado” e “dar trabalho”. A escola o pressiona por uma mudança de comportamento. Entretanto, se por ventura um dia esse aluno toma uma atitude transformadora, de chegar no horário à aula, logo a professora o reprimirá com os seguintes dizeres, na frente de toda a turma: “Chegando na hora, fulano? Que milagre, eim. Vai chover!”. Ao tomar uma atitude transformadora, o aluno gostaria de ser tratado como qualquer outro aluno ou, no limite, receber um reconhecimento discreto por sua boa atitude, mas tudo que a professora faz é coloca-lo de volta em seu lugar supostamente imutável, reproduzindo o estigma posto sobre ele, acusando sua boa atitude de “acidente”, visto que, pelo estigma, esse aluno seria essencialmente atrasado.

Ora, não é preciso ir longe para percebermos que esse paradoxo da mudança em nossa sociedade é visível. Além do exemplo do bandido e do aluno, qualquer um que já tenha tentado uma transformação radical em sua vida deve ter sentido as pressões contra a mudança vinda dos setores mais íntimos e inimagináveis possíveis, justo aqueles que proclamavam pela transformação: amigos e familiares. A família e as amizades são aquelas pessoas que mais deveriam apoiar as boas mudanças em nós, entretanto, às vezes muito sutilmente, nos pressionam de volta aos velhos estigmas e essencializações construídas sobre nós ao longo da vida nesses relacionamentos. É o caso do nerd ou do menino gordo que, mesmo depois de anos, já mudado, encontra com os velhos amigos e se sente como na infância, preso em seu estigma colegial, com ninguém o levando a sério. Também é o caso do “filhinho da mamãe”. Não importa o quanto um homem tenha crescido e se tornado o chefão, ou “durão”, ao lado de sua mãe esse homem será sempre constrangido a ser o “filhinho da mamãe”. Como no caso da professora, os outros resistem às nossas transformações assim como resistimos às mudanças dos outros.

Com toda essa conspiração, mudar fica mais difícil ainda. Além de cortejar a morte, quem muda deve resistir contra os fantasmas de sua biografia, que o assombrarão mais do que nunca na forma de velhos e assustadores estigmas.

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