terça-feira, 14 de dezembro de 2010

O Cachorro Loco

Gostaria de pedir licença ao leitor assíduo do blog pois hoje não postarei reflexões na linguagem usual do Desbanalizando. Ao invés disso, postarei um perfil em homenagem a meu falecido tio. Na verdade, nunca fui muito bom com narrativas, mas como escrevi esse perfil para uma disciplina e recebi um feedback bastante positivo de um professor que estimo muito, resolvi postá-lo.  


O Cachorro Loco

“O tio Henrique era foda”. Justamente assim que, repetidamente, os sobrinhos de Henrique faziam referência ao tio no seu próprio funeral. Mas não só os sobrinhos dele. Podia-se perguntar sobre o Henrique para qualquer irmão dele, ou mesmo para o pai, que a resposta seria a mesma. Só a mãe de Henrique, minha vó, não responderia tão realisticamente assim. Ela não. Com seu jeito mãe de ser, sempre polida, ela não diria que ele era foda; diria que ele “era fogo, viu”.

Nem todos eram sobrinhos do Henrique, todavia, quase todos na família o chamavam de tio Henrique. Era assim que, aos cinqüenta anos, ele era conhecido pela maiorias dos parentes. Como um dos sobrinhos dele, devo dizer que um certo mistério o circunscrevia, é verdade. É que o tio Henrique era conhecido de outra forma pela cidade de Ponta Grossa, onde morava. Para a cidade, ele não era o tio Henrique; para a cidade ele era o “Cachorro Loco”. E quando eu digo “para a cidade”, não se trata de uma sinédoque exagerada: “O Cachorro Loco” já foi tema de um artigo num jornal local dos Campos Gerais. 

Sobre esse mistério de nomenclatura, é bem provável que nenhum familiar saiba exatamente como esse apelido surgiu e nem o porquê. Mas, pelo tio Henrique ser “foda”, pelas suas características e histórias pessoais, posso muito bem imaginar boas pistas que direcionem para a origem desse irreverente apelido.

Para começo de conversa, Henrique era caminhoneiro. Desculpando-se os estereótipos, isso já pode dizer várias coisas sobre ele, coisas que aqui não explicitarei pois estamos lidando com um estereótipo conhecido. Mas uma das coisas que isso não diz é a respeito do seu tipo físico. O tio Henrique podia ter cinqüenta anos e ser caminhoneiro, mas não era um barrigudo relaxado. Muito pelo contrário, fazia exercícios físicos com freqüência e era um dos seres mais fortes e brutos que eu já  conheci. Por ossos do ofício, o Cachorro Loco já havia viajado o Brasil de cabo a rabo e sempre tinha muitas histórias pra contar. Como ele mesmo dizia: “quando vou ao nordeste não é pra passear em Fortaleza. Os turistas vão para as cidades grandes. Eu vou pelas periferias das cidades e vejo a situação desse país”.

Nesse quesito, podia-se se dizer que o tio Henrique surpreendia. Por ser caminhoneiro e bruto (não raro essas duas qualidades são redundantes), muitos de fora da família podiam não saber sobre seus hábitos de leitura e senso crítico. Lia muito, discutia história, mitologia e religião. Dizia que uma de suas vontades era fazer uma camiseta com os escritos “Só putaria. Plim Plim”; uma alusão ao rico conteúdo transmitido pela rede Globo de televisão. Ele sabia muito bem unir as leituras com o que presenciava em suas viagens. Mas esse lado filósofo do tio Henrique era algo que, provavelmente, só os mais próximos reconheciam. O marcante e mais aparente era mesmo sua brutalidade; seu jeito meio Shrek de ser. O que já se constitui como uma boa pista para desvendar seu apelido na cidade.

Além disso, essa brutalidade do tio não era presente somente em sua aparência, mas em suas atitudes. Não tinha medo nenhum de xingar alguém que lhe contrariava e muito menos de arrotar e peidar em público. Certa vez, reuniu todos os sobrinhos na sala de casa e, com um maçarico bem posicionado, provou empiricamente que flatulências são perigosamente inflamáveis. Ao mesmo tempo em que era bruto, era muito sarrista e divertido; do tipo que mete o pé na porta dando risada, sem vergonha de ser feliz.

Não levava desaforo para casa, também. Seus irmãos contam da vez em que, num bar da cidade, um “maluco” (sendo fiel à terminologia pela qual a história foi contada) pulou em sua frente e começou a manusear um nunchakos, arma de luta mais conhecido como “tchako” aqui no Brasil, somente para provocá-lo. Henrique meteu a mão na arma, imobilizando-o, e simplesmente disse: “minha vez”. Não é preciso nem contar o que aconteceu com o “maluco” depois disso. Essa é só uma das várias histórias de pancadaria do tio Henrique.

Outro exemplo que mostra essa mistura de brutalidade com loucura do tio, no sentido divertido e destemido, era como ele apelidava suas armas brancas; que utilizava como defesa preventiva em suas viagens. Todo caminhoneiro sabe que, encontrando-se todo tipo de coisa nos postos e paradas desse país, deve- se proteger bem. Para a sua proteção, tio Henrique possuía quatro armas: o “amansa-loco”, nome bem sugestivo para um pedaço de pau envernizado parecido com um taco de bets; o “espirito de luz”, um cajado de marfim que ele garantia que, através de uma porrada, o sujeito encontraria a luz celestial e Jesus; o “exorcista”, um facão que dispensa explicações; e finalmente, o estilingue. Alguns poderiam questionar se o estilingue não seria uma arma fraca e infantil em relação à brutalidade de Henrique ou mesmo às armas já citadas. Bom, basta perguntar isso a quem realmente viu aquele curioso e singular estilingue. Quanto ao “corpo” da arma, normal, nada demais. Qualquer criança a identificaria. O grande diferencial daquele estilingue era a espessura da borracha responsável pela força do lançamento do projétil. Aquela borracha era tão espessa que nenhum sobrinho conseguia esticá-la. Quando perguntado sobre que tipo de munição o tio usava naquilo, ele dizia, para a surpresa dos sobrinhos, que bolinha de gude não era boa. “Bom mesmo é porca de caminhão”. Dói só de imaginar uma daquelas nas costelas.

Através dessas histórias e traços de personalidade do tio Henrique, pode-se já ter uma idéia do por que ele era conhecido como “cachorro loco” na cidade. Esse apelido remete a um animal, louco porque destemido e sem meios-termos. Mas, isso é só a casca, superficial, do significado que esse apelido potencialmente revela.

Além de tudo isso, há um certo momento na vida de Henrique que pode revelar mais sobre esse apelido. Mais especificamente, pode-se fotografar um exato momento e ver esse apelido lá, acenando, pairando na imagem; quase que nos convidando para desvendar seu significado.

Um dos sobrinhos de Henrique tinha um cachorro da raça rotweiller, chamado Max. O cachorro, á primeira vista, era assustador. Bruto e latindo ameaçadoramente, Max botava medo em qualquer um. Entretanto, depois de passar uns dias com o cachorro, conversando com ele e alimentando-o, qualquer um poderia ser amigo de Max.


Mesmo Max sendo o cachorro do sobrinho, o tio Henrique tinha uma especial relação com o animal. Talvez por nunca ter tido filhos, Henrique cuidava de Max como um. Brincava, conversava, dava banho e, quando ia correr pela cidade para se exercitar, levava Max junto, passear.

Ora, o momento que deve ser fotografado na vida do tio Henrique para se chegar mais perto do potencial significado mais profundo de seu apelido, e torná-lo evidente, é justamente quando ele brincava com Max. Ou seja, quando sua relação com o cachorro aflorava e era mais perceptível.

Quando brincavam nos fundos de casa, Henrique e Max, os dois brutos, pareciam estar lutando jiu-jitsu. Os dois rolavam no chão como dois animais numa luta selvagem. Mas, tal brutalidade era mais aparente do que real. No fundo, aquela relação era a pura amizade que se manifestava na brutalidade, num animalesco alegre. Ao se fotografar os dois rolando no chão, divertindo-se com a luta de brincadeira, obtém-se uma imagem. É justamente essa imagem que torna evidente o apelido, fazendo emergir seu mais profundo e belo significado.  Afinal, se se olhar para essa foto, dos dois rolando no chão, e se perguntar “quem é o cachorro loco nessa imagem?”, fica difícil responder.

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