quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O tema do aborto (ou seria "o tema da vida"?)

No segundo turno das eleições desse ano, o tema do aborto surgiu com uma força avassaladora. Tanto Dilma quanto Serra, ás vezes podendo até contrariar suas reais posições sobre o tema, ficaram um tanto em cima do muro. Um falava de descriminalização, o outro de “questão de saúde pública”, mas ambos sabiam que, para a candidatura deles, aquela não era uma boa hora para se discutir o tema. Assumir posições rígidas naquele momento poderia resultar num “suicídio eleitoral”. Somente agora, com Dilma eleita, é que essa discussão não só pode como deve ganhar força.

Há cerca de sete meses, o programa Hora da Coruja, do filósofo Paulo Ghiraldelli Jr., convidou o Dr. Hélio Bicudo para um debate sobre esse tema. Procuramos, com o intuito de somar algumas perspectivas, elencar alguns pontos interessantes e questionamentos que surgiram durante esse programa de filosofia.

Um dos primeiros pontos que chama a atenção, já nos primeiros minutos do programa, é a preferência que Ghiraldelli demonstra ao chamar o “tema do aborto” de “tema da vida”. Afinal de contas, discutir aborto deveria ser, antes de tudo, discutir a própria vida. Por quê? Veremos.

Do ponto de vista estritamente legal, argumentou Bicudo, já há um problema. Enquanto para a constituição brasileira de 1988, por versar sobre o direito à vida e sua prevalência, o aborto seria crime, passível de punição; para o código penal de 1941 existiria o “aborto legal”, em caso de estupro ou risco de vida. Portanto, esse código estaria desatualizado com relação à constituição. O mais importante nesse contexto seria destacar que a vida é um direito fundamental.

Se tomarmos o direito à vida como direito fundamental, gerador de todos os outros direitos, a questão do aborto no quadro atual fica extremamente complicada. No caso de risco de vida, onde se deve escolher entre a vida da mãe e a da criança, estaríamos defendendo a vida mais provável de ser salva em detrimento da outra. Faz mais sentido salvar uma vida do que sacrificar duas. Até aí tudo bem, isso de certa forma faz sentido para nós. A coisa complica, de verdade, no caso de estupro, onde, durante a gestação, pode não haver risco de vida nem para a gestante, nem para a criança. Nesse caso, a vida da criança seria sacrificada pelo trauma da mãe. Seria isso certo? Não haveria outras soluções que não o aborto nesse caso? Complicado dizer. Afinal, essa é uma experiência muito forte para uma mulher e isso deve ser levado em consideração.

Outra discussão que permeia o tema do aborto é a questão do início da vida. Afinal de contas, onde a vida começa? Se ela começa em determinado tempo “x”, o aborto poderia ser feito antes disso? Bicudo argumenta que alguns bioéticos defendem que a vida começa na concepção. Se não for assim, isso daria margem para um marco “retórico” da vida que seria sempre mutável. Assim como décadas atrás nós só morríamos “oficialmente” quando o coração parasse, e hoje isso se dá quando há morte cerebral, no caso da vida estaríamos sempre discutindo o momento inicial da vida e, conseqüentemente, a melhor hora para se abortar.

Além disso, no Brasil, hoje, é possível perceber duas posições, a grosso modo: de direita e de esquerda. A esquerda defende, no limite, a legalização do aborto com um argumento que tem afinidade com o feminismo e com o conceito de liberdade. A mulher, com o direito de liberdade sobre seu corpo, poderia decidir sobre o aborto. Já a direita levanta a bandeira da vida. Defende que aborto é um crime contra a vida e deve ser punido. Estaria uma delas certa? Tendo em vista que a vida é um direito fundamental, e que ela começa na concepção, como poderíamos questionar esses posicionamentos de direita e esquerda?

Pelo lado da esquerda, concordamos que a mulher tenha liberdade sobre seu corpo. Mas, se isso implica numa decisão de aborto, não estaríamos tomando o feto como uma simples extensão do corpo da mulher, e não como outra vida? Pelo lado da direita, como vimos, é feita uma defesa à vida, o que é plausível segundo nossos pressupostos. Mas essa defesa esta baseada em um conservadorismo que acarreta certas contradições feias de se ver. Por exemplo, defende-se a criminalização do aborto, com vistas à defesa da vida, mas, ao mesmo tempo, luta-se pela pena de morte. Por isso, essa defesa da vida parece estar mais baseada em valores conservadores do que na discussão filosófica da vida e do direito fundamental à vida. Nesse contexto, podemos dizer que a esquerda pode estar atentando contra a vida quando faz prevalecer a liberdade da mulher em detrimento da vida da criança, enquanto a direita defende a vida sustentando-se em valores duvidosos, por vezes destrutivos.

Nesse ponto fica claro que, com esses questionamentos, discutir o aborto é, antes de tudo, discutir a vida, seja pensando a vida como direito fundamental, seja com dúvidas bioéticas. Acreditamos que esse seja o melhor caminho para se pensar o aborto. Nem fazendo-se prevalecer a questão da liberdade, nem os valores conservadores.

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