sábado, 13 de novembro de 2010

O que diabos é Ideologia?

“Ideologia, eu quero uma pra viver”

A primeira vez que me incomodei com o termo ideologia foi aos catorze anos ao tentar interpretar a música de Cazuza. Sempre que tentava uma interpretação para o refrão não conseguia nada de inspirador. Era preciso buscar os possíveis significados da palavra ideologia para, somente daí, poder começar a construir uma boa interpretação para a música.

Minha primeira tentativa, realizada já naquela época, foi o dicionário. Segundo o dicionário Aurélio, Ideologia significa:

1. Conjunto de idéias que tem por base uma teoria política ou econômica.
2. Modo de ver próprio de um individuo ou de uma classe.

Tendo isso em mente, tentei novamente dar um sentido para o refrão de Ideologia. O resultado foi que não achei sentido nenhum e passei um bom tempo sem pensar nisso. Nenhumas das duas definições do dicionário me deram uma boa sustentação para apreciar Cazuza.

Mais tarde, eu percebi que essas duas definições do Aurélio são curiosamente relacionadas com as noções de ideologia para o senso comum. Para o senso comum, ideologia pode significar duas coisas:

1. Visão política ou partidária.
2. Visão de mundo.

Ora, podemos ver que há uma correspondência entre o que o senso comum entende por ideologia e as definições do Aurélio. Nesse contexto é que podemos dizer que a ideologia (visão política) de fulano tende para a esquerda ou que as ideologias (modos de ver o mundo) de duas pessoas podem ser diferentes. Entretanto, quando tentamos significar o refrão de Cazuza com essas duas definições, algo parece estar fora do lugar. Isso significa que precisamos ir mais a fundo, para os conceitos específicos de ideologia. Na obra Introdução à Análise do discurso, de Helena Brandão, é trabalhado um breve histórico do termo que nos elucidará para essa questão.

O termo ‘ideologia” surgiu, segundo Marilena Chauí, com o filósofo Destutt de Tracy em uma teoria que buscava  analisar, com métodos rigorosos, científicos, a faculdade de pensar. Com Napoleão, “ideologia” passou a ter um significado pejorativo visto que ele criticava os ideólogos franceses (pensadores da ideologia) por conferirem um risco ao poder, desconhecendo os problemas concretos e sendo abstratos, nebulosos demais.

Em Marx e Engels, o conceito de ideologia ganha bastante força e continua carregado de um significado negativo. Tal como Napoleão criticara os ideólogos franceses, Marx e Engels criticavam os filósofos alemães pela “maneira de ver abstrata e ideológica”. Aqui, a ideologia é “identificada com a separação que se faz entre a produção das idéias e as condições sociais e históricas em que são produzidas”. Em outras palavras, a ideologia seria a produção de idéias, “visão de mundo”, desvinculada da realidade material, concreta. Um exemplo disso é quando dizemos que uma coisa “na teoria é muito bonita, mas na prática não funciona”. Ou seja, estamos dizendo que a teoria ficou tão abstrata que só no campo das idéias ela faz sentido, pois fugiu da realidade.

Para Marx, a classe dominante, aquela que domina os meios materiais de produção, possui as idéias dominantes da época. Para poder dominar, essa classe se utiliza de um instrumento de dominação: a ideologia. Aqui, a ideologia ganha um significado que tem a ver com ilusão, com o mascaramento ou inversão da realidade. Para que a classe dominada permaneça dominada, ela precisa estar sobre o efeito da ideologia, dessa abstração que mascara as contradições da realidade. Ela, a ideologia, seria uma ilusão que se faz de verdade, "amenizando" as contradições sociais. A ideologia faz com que acreditemos, por exemplo, que pobre é pobre porque é “vagabundo”. Ou mesmo que se trabalharmos o bastante seremos inevitavelmente ricos e, conseqüentemente, felizes. Na realidade, vemos que nenhuma dessas duas coisas é verdade absoluta, ou natural, mas continuamos a acreditar fielmente nelas. Isso é ideologia. Para Marx, a ideologia é o conjunto de representações e idéias da classe dominante que se impõem sobre a classe dominada, funcionando como instrumento de dominação.

Mais pra frente, outros conceitos de ideologia, que levarão em conta não só funções negativas como positivas, virão. Ideologia para Ricoeur, por exemplo, tem função tanto de integração e coesão social, como de dominação, podendo ser positiva e negativa; portanto, teria mais afinidade com a definição de que ideologia é uma visão de mundo de uma classe, não só da classe dominante. Em Althusser, a ideologia tem a função de "transformar" indivíduos em sujeitos, sendo a-histórica.

Nesse ponto, creio que, para interpretar o refrão de Cazuza, o conceito de ideologia de Marx pode ser relevante: a ideologia como ilusão. Como podemos perceber na música Ideologia, temos um eu - lírico que está desiludido. Seu “prazer virou risco de vida”, seus “heróis morreram de overdose” e seus “sonhos foram todos vendidos”. Como viver nessa situação, desiludido em meio a uma realidade contraditória e cruel? O eu-lírico pede por uma ideologia para viver pois, em confronto com a realidade, só esta tendo infelicidades. Assim, a ideologia seria uma espécie de "ilusão necessária", já que a realidade se torna, por vezes, dura demais para nós. Entretanto, uma outra interpretação, talvez mais inspiradora, também é possível. Estando esse jovem "em cima do muro", ele brada por uma ideologia em seu sentido positivo, ou seja, um sistema de crenças e idéias que lhe permita, após as desilusões, pensar por si mesmo o mundo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário