quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Sobre dar Esmola


“Amigo, vim de Brasília para cá e não tenho dinheiro para voltar pra casa, será que você pode me ajudar?”
“Moço, tenho quatro filhos, sou mãe solteira e não tenho dinheiro pra dar comida aos meus filhos, me dá uma ajuda?”

Qualquer um que more na cidade, hoje, com certeza já ouviu algum desses pedidos vindos de algum estranho; seja nas ruas, no portão de casa ou mesmo no ônibus. Aqui em Curitiba é comum que pessoas necessitadas peçam colaborações dentro dos “vermelhões”, ônibus bi-articulados típicos da cidade. Ao ouvir um pedido desses, muitos de nós entram num dilema: afinal de contas, ajudo ou não ajudo?

Esse dilema surge de uma série de conflitos de valores vindos da nossa cultura. Apesar de ser um país laico, a cultura brasileira tem raízes muito fortes no cristianismo. Pelos valores cristãos de solidariedade, de ajuda aos pobres, sentimos que é nossa obrigação ajudar os necessitados. Temos pena e logo pensamos em tirar algumas moedas do bolso. De repente, outros pensamentos começam a impedir que façamos a caridade naquele momento. Ao sentirmos aquela dorzinha no coração, e o medo de sermos punidos e irmos para o inferno, colocamos a mão no bolso e já pensamos: “mas espera aí! Eu preciso desse dinheiro... Trabalhei duro e pago impostos. É dever do Estado cuidar dessas pessoas! Se eu ajudar, estarei simplesmente reforçando que o Estado não faça nada. Além disso, não sei se vão comprar cachaça com esse dinheiro”. Hesitamos.

É aí que o dilema se instaura: se damos esmola, temos a idéia de que estamos alimentando a indiferença do Estado, resolvendo o problema somente superficialmente. Se não damos, não estamos sendo solidários e, além disso, a necessidade dessas pessoas é imediata. A mãe solteira na frente do nosso portão não pode esperar pelo nosso protesto. Por mais que briguemos por políticas públicas que atendam esses indivíduos, a necessidade deles se dá no momento presente, agora. Tendo isso em vista, a questão da esmola se torna extremamente complexa. Devemos não dar esmola, no pensamento de que se deve “dar a vara-de-pescar , e não o peixe”, negligenciando a necessidade imediata dessas pessoas; ou dar esmola, atendendo essa necessidade, mas correndo-se o risco de reproduzir a indiferença por parte do Estado e criando a dependência dessas pessoas para com a caridade?

Essa mesma questão pode ser transposta para a tão discutida bolsa-família. Até que ponto a bolsa-família é uma política democrática, e até que ponto ela é assistencialismo? Questão complicada. Afinal, como diria Betinho na década de 1990 sobre a Ação de Solidariedade Contra a Fome: “não resolve, mas traz uma nova perspectiva”. A bolsa-família também não resolve o problema social da fome, mas traz uma nova perspectiva. Como podemos cobrar cidadania e participação política de um individuo que passa fome? Nesse sentido, o bolsa-família ajuda imediatamente a dar o impulso que essas pessoas precisam para serem reconhecidas como sujeitos, como cidadãs. Mesmo assim, o bolsa-família corre o risco de criar uma relação de dependência caso novas políticas públicas não sejam criadas para resolver o problema. Não compartilho da opinião de que o bolsa-família instigue a “vagabundagem”. Garanto que muitas famílias preferiam trabalhar para ganhar um salário mínimo do que “não fazer nada” e ganhar duzentos reais. Essa quantia não enche a barriga de ninguém.

Pode-se dizer então que somente a história poderá dizer se o bolsa-família é assistencialismo ou não. Tudo depende de, após esses indivíduos necessitados terem recebido a bolsa para no mínimo serem reconhecidos, que a própria bolsa-família e novas políticas sejam criadas, repensadas, renovadas e implementadas daqui pra frente.

Portando, dar esmola ou não? Bolsa-família ou não? Essas são questões que não pretendo responder aqui, mas pretendo desbanaliza-las para que possamos refletir sobre elas. Vale lembrar que não só o Estado tem responsabilidade para com as classes subalternas, mas a sociedade como um todo tem. Essa é a noção de cidadania. Noção que é um ponta-pé inicial para respondermos tudo isso...

2 comentários:

  1. Gostei do blog, em especial seu modo como escreve! Palavras bem variadas e sucintas. Um excelente artigo.

    Porém, não pude concordar com algumas coisas citadas, como por exemplo:

    "A bolsa-família também não resolve o problema social da fome, mas traz uma nova perspectiva."

    Não acha que isso é um passado bem parecido com o de Roma na época dos "Césares"?

    Comida e entretenimento a todos enquanto o SENADO aprova leis para benefícios, visando o bem estar próprio de quem está no poder. E os "Césares"? Não seria igual ao nosso diguiníssimo ao Presidente da República Federativa do Brasil, meros figurantes?

    Acho que esses projetos, mal estruturados (nascidos na época do FHC), só servem para desbaratinar a população do que é fato e realmente impacta na vida de cada um dentre às fronteiras do nosso Brasil varonil de sempre.

    Política é complicado para se discutir... rsrs

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  2. Vitor, obrigado pelo comentário. Fiz esse artigo justamente para por em pauta os dois, ou mais, lados dessa discussão. Você provavelmente compreendeu, ou mesmo já tinha em mente, o lado "assistencialista" da bolsa-família, e não compreendeu o outro lado que eu trouxe a tona. Meu objetivo aqui é mostrar que essas questões são muito mais complexas do que aparentam. Para se compreender a "nova perspectiva" é preciso se atentar para o conceito de cidadania. Cidadania é mais do que simplesmente o reconhecimento dos direitos e deveres que o Estado preve para o cidadão; mas o reconhecimento do direito a ter direitos e da participação ATIVA na construção do sistema democrático. Como é que esperamos que esses individuos que vivem na miséria participem politicamente se eles não tem nem o que comer? Não ter nem o que comer significa o ferimento do artigo da constituição que versa sobre o direito à dignidade. Não ter nem o que comer significa não ser reconhecido como cidadão e nem como sujeito. Por isso, a classe média e alta tende a ver os pobres como não-sujeitos da ação; como quem não tem direitos, vagabundos e por aí vai.
    Discordo da sua posição, assim como discordo da posição a respeito da "instigação à vagabundagem", quando vc cita a política romana de pão e circo. Como citei no texto, a bolsa-família tem um valor de 200 reais pra uma família inteira. O povo não tá de barriga cheia e nem se divertindo. É preferível ter um emprego e ganhar um salário minimo; que já é pouco, visto que uma pessoa só precisaria de um salário mínimo de dois mil reais hoje no Brasil. O ponto de vista que tentei levantar é o bolsa-família não como "pão-e-circo", para cegar o povo das políticas. Muito pelo contrário, o bolsa família para que o povo pelo menos tenha o que comer para começar a poder ser reconhecido como sujeito e ter participação política.
    Mesmo com tudo isso, não posso discordar de você que essa possibilidade assistencialista existe, como citei no texto. Só que quem vai responder isso pra gente é a história. Se as políticas sociais não evoluirem daqui pra frente, o bolsa-familia será meramente assistencialismo, começou e broxou. Mas se elas evoluirem, a bolsa poderá ser um ponta-pé democrático.
    Meu objetivo aqui será trazer o banal e mostrar como ele, sobre outros pontos de vista, se transforma no "complicado para discutir".
    O que não podemos é fugir da discussão.

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