quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Ariadna e a encruzilhada da identidade

Acabou para Ariadna. Com uma semana de BBB ela foi eliminada por um percentual expressivo de votos. Muitos irão criar hipóteses ou até mesmo teorizar sobre os motivos pelo qual o público eliminou Ariadna: preconceito, dificuldade em lidar com o diferente, aceitaram os gays porque viram no transexual algo mais malévolo. Não desvalido essas explicações. Alias, tendo visto nossa história e cultura, acho que todas elas estão corretas. Entretanto, não é esse ponto da discussão que quero abordar aqui. O problema que pretendo abordar é a encruzilhada na qual a Globo, talvez sem saber, colocou Ariadna. Tal encruzilhada, não por acaso, se relaciona com uma das justificativas mais interessantes dadas por quem eliminou Ariadna: “ela não foi honesta”.

Antes de tudo, é preciso compreender a relação entre a transexualidade e a identidade. O transexual é aquele individuo que se identifica como mulher. Mas, o que é a identidade? Em termos bem grosseiros, a identidade é aquele conjunto de características ou, mais especificamente, como nos aponta a antropologia, conjunto de signos e influencias pelos quais o individuo se distingue e se assemelha, ao mesmo tempo, em suas relações com os outros. Ou seja, a identidade, ao mesmo tempo que nos diferencia dos outros, num horizonte que nos torna únicos, nos assemelha a outros, quando nos identificamos com eles. A identidade diz “sou isso e não aquilo”. Além disso, a identidade só se concretiza na alteridade, na presença do outro; ou seja, só estamos afinados com a nossa identidade quando temos o reconhecimento do outro. Nesse ponto, quando dizemos que “devemos ser nós mesmos e não ligar para o que os outros pensam”, isso soa como uma ideia estranha. Afinal, sermos nós mesmos, nossa identidade, é um jogo de semelhanças e diferenças, entre o que creio que sou e aquilo que os outros reconhecem em mim. Agora, já temos condições de observar a encruzilhada na qual a Globo colocou Ariadna.

Ora, a Globo foi fiel à identidade de Ariadna quando a tratou como mulher: ela estava no grupo das mulheres, era atendida como “ela” e etc. Entretanto, a Globo traiu a identidade de Ariadna ao dizer ao público que ela era transexual. Ora, Ariadna é mulher. É essa a identidade pela qual ela pretende ser atendida, afinal, ela envia todos os signos para isso e se crê mulher. Nesse caso, o público exigia que Ariadna fosse “honesta”, ou seja, confessasse aos outros BBB’s que ela é trans. Por outro lado, caso Ariadna atendesse às expectativas do público, ela estaria sendo desonesta consigo mesma, afinal, estaria traindo sua própria identidade. Ariadna não quer ser atendida como trans, como réplica de mulher, mas sim como mulher. Confessar ser trans é correr um alto risco, de macular a identidade de mulher.

Alguns poderiam dizer que a honestidade se pauta no natural, que se Ariadna nasceu homem, então sua identidade é de homem. Isso é um erro crasso, pois, o que é o natural? Desde o pensamento do romantismo e de Rousseau, nos acostumamos a pensar que o natural é o bom. Entretanto, se tratando de identidade, e o conceito de natural caindo no senso comum, acaba sendo bom aquilo que cremos que é natural não em seu  sentido estrito, mas sim no senso comum. Nesse caso, damos margem para os comportamentos mais fascistas que podemos ter, proibindo alguém de ser algo que fuja do nosso conceito de natural. Proibindo, por exemplo, os trans de serem mulheres taxando-os de transexual, para que nos alertem de que são meras cópias de mulher.

Por mais que Ariadna fizesse a cirurgia perfeita, alterasse seu DNA, produzisse naturalmente os hormônios certos e inserisse corpúsculos de bar em todas as suas células, ela ainda seria vista como homem. Outro exemplo emblemático nesse sentido são os hermafroditas. Para saber qual o sexo de um hermafrodita, e eliminar um de seus órgãos sexuais, é recomendável observar seu comportamento: afinal de contas, ele (ou ela) se crê homem ou mulher?

No fim das contas, Ariadna teve momentos de felicidade. Momentos onde o que ela crê ser se afinou com o reconhecimento que fizeram dela, dentro da casa. Ali dentro, em muitos momentos, Ariadna foi mulher. Como ela mesma disse, era seu momento de “anonimato”, onde os outros a tratariam como mulher. Agora, eliminada, Ariadna dificilmente será vista como mulher novamente. Acabou para Ariadna? Esperamos que não.

PS: Para uma melhor compreensão da relação entre o pensamento romantico e o conceito de natural, tendo como objeto o caso de Ariadna -> http://ghiraldelli.pro.br/2011/01/19/ariadna-sob-o-imperio-do-natural/

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