terça-feira, 27 de setembro de 2011

Quebrando o tabu abraçando Kant e Sartre


“Declarar guerra às drogas é declarar guerra às pessoas”. A fala de Ruth Dreifuss, presidente da confederação da Suíça em 1999, no recente documentário Quebrando o Tabu, resume o principal motivo pelo qual a chamada guerra às drogas, iniciada pelos EUA em 1971, não deu certo. Qualquer política de guerra e repressão já implementada cujo objetivo seja resolver o complexo problema das drogas, em diversos países, resultou numa relação custo/benefício baixa; muitos investimentos e violência para poucos resultados.

Diante dessa realidade, estão em marcha, já em nossa década, diversos movimentos que, seja lutando pela legalização da maconha, seja protestando pela descriminalização do usuário de drogas em geral, têm como fundamento uma conclusão que a cada dia fica mais difícil se ser refutada, até mesmo por quem há pouco tempo atrás marcava presença no front de batalha: a guerra às drogas fracassou e precisamos de alternativas.

Já muito interessado por esse assunto, assim que apareceu na timeline de meu perfil no Facebook que esse documentário poderia ser visto de graça através do site do Terra, repassei a notícia e corri para assisti-lo. Produzido por Luciano Huck e tendo como protagonista o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso,  Quebrando o Tabu me surpreendeu. Tal surpreendimento veio não simplesmente porque o documentário falava o que eu queria ouvir (afinal, eu já sabia do que se tratava e já compartilhava de muitas das opiniões do documentário), mas sim porque ele me disse mais do que eu queria ouvir: além de muito bem produzido, o filme foi munido de bons argumentos e ampliou o meu entendimento a respeito da questão. Sempre cuidadoso e pragmático, Quebrando o Tabu busca explicações e alternativas sensatas, aplicáveis, baseadas em experiências concretas de vários países e depoimentos de quem já não leva a questão como tabu. Mais do que isso, pensa em soluções que não caem na bipolaridade ingênua do “vamos repreender total” contra o “vamos liberar geral”.

Nesse texto, não falarei muito mais sobre o documentário, afinal, ele é recente e recomendo ao leitor que o assista. Não quero adiantar muita coisa e acabar por estragá-lo. O que é preciso saber do documentário daqui para frente é que ele não propõe uma solução definitiva para o problema das drogas, todavia, é importante que as alternativas propostas tenham como fundo não a guerra, mas sim a paz. O filme apresenta boas alternativas já realizadas em países como a Holanda e a Suiça. Além disso, existe algo no documentário que, a meu ver, é fundamental para todas as alternativas propostas: uma aposta na noção de sujeito moderno e liberdade.

Em meados do século XVIII Kant nos deu o modelo de subjetividade moderna com o sujeito transcendental, que é o sujeito racional, consciente e responsável pelos seus atos. Apesar das críticas à metafísica na filosofia contemporânea, não abandonamos essa noção de sujeito. No direito, por exemplo, devemos considerar que cada um de nós é dotado de racionalidade e, consciente de nossos atos, devemos nos responsabilizar por cada um deles. Se assim não fosse, nunca poderíamos ser condenados por crime algum visto que, ao assaltar um banco, por exemplo, sempre poderíamos argumentar que não somos conscientes daquilo que fazemos.

Essa noção de responsabilidade aliada ao sujeito também pode ser vista, de um aspecto um pouco diferente, em Sartre, quando a filosofia pós-kantiana busca resolver a questão da relação entre sujeito e objeto. O projeto sartriano, por se manter fiel a uma parcela da fenomenologia de Husserl (a de que a consciência não é um ser, mas sim um movimento, dotado de intencionalidade), concebeu que a consciência é nada, ou seja, não possui uma essência, mas é sempre um projeto, um movimento em direção ao ser. Isso significa dizer que nós, seres humanos, não possuímos uma essência que nos diga quem somos; ao invés disso, somos um projeto sempre inacabado, um “para si”, um movimento. Antes existimos do que somos e, por isso, sua filosofia é chamada de existencialismo. O ser humano, então, existe e, ao longo da sua vida, vai construindo sua essência a partir de um movimento, um “para si” que o coloca sempre em busca do ser. Mas que movimento é esse? A liberdade.

A liberdade para Sartre, então, é esse movimento em direção ao ser a que estamos condenados. Nossa liberdade é exercida sempre que, diante de uma escolha, temos que optar, decidir, e disso não podemos nos abster. Mesmo quando pensamos não decidir, o que estamos fazendo é decidir fugir da decisão. Justamente por isso, não podemos também abdicar da responsabilidade sobre nossas decisões. Mas e aí? Não existe repressão? Não existe uma limitação de opções imposta pela sociedade e pela moralidade, por exemplo? Existe. Todavia, ainda assim podemos decidir nos livrarmos das amarras exteriores e de maneira alguma responsabilizar a sociedade, as estruturas, o “sistema” ou o inconsciente por nossas decisões. Podemos ter diante de nós escolhas muito difíceis, mas ainda sim serão escolhas. Para Sartre, o importante não é o que fazem de nós, mas sim “aquilo que fazemos com o que fizeram de nós”.

Tendo tanto a noção de sujeito em Kant, como também a noção de liberdade em Sartre, em mãos, chegamos à conclusão de que, sendo seres dotados de razão, sempre teremos que optar e podemos, apesar de tudo, fazer boas opções quando elas nos são dadas. É aqui que o documentário Quebrando o Tabu, ao meu ver, aposta suas fichas. Criar políticas de proibição total de uso às drogas significa apelar para uma essência humana que é errante. Significa dizer: “já que o ser humano inevitavelmente usa drogas, a solução é proibir de vez, extinguir as opções”. Essa solução, com relação às drogas, não funcionou. Sendo assim, a pergunta de um entrevistado no documentário é boa: "Se não conseguimos acabar com as drogas dentro de uma prisão de segurança máxima, como podemos acabar com elas é uma sociedade livre?". E a resposta talvez seja: permitindo e ampliando próprio exercício da liberdade.

Por que, ao invés de guerra, não podemos fazer como na Holanda e Suiça, e dar um voto de confiança na racionalidade das pessoas quando oferecemos para elas opções melhores? Ao invés de tentar zerar as opções, proibindo as drogas, e fazendo com que a pessoa opte por compra-la ilegalmente, por que não oferecer aos usuários opções mais seguras, reguladas e controladas, de maneira que eles possam optar usar drogas sem ferir a liberdade alheia e de maneira legal? Não é isso que fazemos com o cigarro e estamos começando a fazer com o álcool, drogas que, em determinada perspectivas, são mais nocivas ao individuo, ou mesmo socialmente, do que a maconha, por exemplo? Ao invés de proibir, não podemos informar e educar, de maneira a deixar a opção de usar, ou não usar, drogas, para o individuo, regrando o uso como fazemos para o cigarro? Não obteríamos um melhor controle social caso, através das leis e políticas, regrássemos a produção, distribuição e uso de drogas, ao invés de simplesmente proibi-las, deixando com que o traficante crie suas próprias regras? Por que considerar o usuário um criminoso quando  ser considerado um doente em outros países tem trazido melhores resultados? 

Todas essas são perguntas e alternativas que em determinados contextos tem trazido bons resultados e funcionam justamente porque apostam na racionalidade e na liberdade das pessoas, buscando ampliar as opções que o individuo tem, deixando-o optar ao invés de restringir-lhe as opções. A solução, portanto, talvez não seja tratar as pessoas como se estivessem num presidio de segurança máxima, cerceando suas opções, mas sim ampliando as opções disponíveis e permitindo que elas exerçam o que lhes é próprio: a liberdade e a racionalidade.

Sendo racionais e podendo ponderar quais são as melhores opções quando as temos em mãos, parte significativa dos indivíduos ou tem optado por não utilizar drogas, mesmo que estas estejam disponíveis legalmente (por causa da educação e informação de que as drogas são nocivas), ou optado por utiliza-las, mas dentro dos limites da lei, que restringem o uso a determinada idade, local, quantidade e etc, visto que essa é, na maioria das vezes, a melhor opção para ele.

Alguns podem argumentar que apostar nessas fichas em nosso país, onde a educação é uma lástima, é perigoso. Pode ser, mas a flecha foi atirada e não tem volta. O documentário de FHC, depois de vários documentários e marchas a respeito da descriminalização da maconha, e mesmo sua legalização, é um sinal claro disso.  Estamos chegando ao ponto de decisão onde teremos que exercer nossa liberdade e escolher se ficamos com a guerra às drogas (o que por jurisprudência tem nos mostrado que é uma péssima opção), ou buscamos outras soluções. Não podemos mais escapar dessa decisão. Essa é nossa condenação.

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