domingo, 2 de janeiro de 2011

Sartre e o Marketing

Há uma grande discussão envolvendo o marketing que, não raro, causa brigas em salas de aula quando tema é abordado e gera discussão entre alunos: o papel do marketing no consumismo. Se pudéssemos resumir essa discussão, diríamos que certos segmentos das ciências humanas apontam que o marketing é capaz de criar valores destrutivos para a sociedade, incentivando o consumismo (aqui entendido como consumo desmedido, destrutivo) e, na contramão desse pensamento, o marketing se defende com a ideia de que ele mesmo não cria necessidades, somente aproveita os desejos que já estão na sociedade. No limite, a posição que critica o marketing joga toda a responsabilidade do consumismo para esse, enquanto isso, o marketing acaba se desrresponsabilizando, jogando toda a responsabilidade no individuo que compra. Ambas a posições não são boas. Explico melhor.

Aqui está um texto (O Marketing cria necessidades?), de Carlos Alberto de Faria, que resume a defesa que o marketing faz de si mesmo quando o assunto é consumismo. O argumento do texto se fundamenta no que já dissemos, sobre o marketing não criar necessidades. Ele cria uma distinção entre necessidade (que seria vital) e desejos e conclui, no seguinte trecho extraído do site:

"O marketing não criou a necessidade, pois a maioria das pessoas não necessita de um relógio que funcione a 150m. O marketing explora o desejo atávico do ser humano. Desejo de auto-realização, desejo de se diferenciar, desejo de se identificar, desejo de pertencer a esta ou aquela 'tribo'. O marketing disponibiliza no mercado, já o desejo é característica de cada indivíduo. O ser humano, cada um de nós, escolhe: comprar ou não. A decisão é individual e solitária!"

Com esse argumento, o marketing joga a responsabilidade do consumismo para o individuo que compra, visto que a decisão de comprar seria do próprio individuo. Nisso, o próprio marketing acaba se desresponsabilizando. Ora, se tudo que ele faz, ao disponibilizar produtos no mercado, é reproduzir desejos que já estão na sociedade, então a culpa pelo consumismo seria da própria sociedade e do individuo que toma a decisão de comprar. Seria esse tipo de atribuição de responsabilidade correto? Pelo ponto de vista de Sartre, não.

Em seu existencialismo, Sartre defende que nos seres humanos a existência precede a essência, sendo que, se somos capazes de sairmos de nós mesmos para uma autorreflexão, temos a capacidade de construirmos a si próprios. Não há essência imutável ou caminhos prontos que guiem o nosso ser e, portanto, somos “condenados à liberdade”. Em outras palavras, os seres humanos se diferenciam dos animais pela liberdade, pelo poder de decisão que, a cada momento, em cada ato, vai construindo nosso ser. Nesse contexto, sendo livres, somos irremediavelmente responsáveis pelos nossos atos e decisões.

Até aqui, o argumento de defesa ao marketing é plausível. Ora, o individuo que compra, então, não pode culpar o marketing por sua decisão. Sendo assim, se esse individuo é consumista, a responsabilidade é inteiramente dele, afinal, as decisões de compra é ele quem toma. Isso está correto segundo o pensamento de Sartre.

Entretanto, no existencialismo sartriano, apesar do individuo ser responsável pela sua decisão de compra, isso não desrresponsabiliza o marketing. Por quê? Porque a liberdade em Sartre não se resume ao individualismo das escolhas. O próprio Sartre, contra esse mal-entendido, adverte: quando diz que o homem é responsável por si próprio, por sua existência, não quer dizer que o homem é responsável pela sua restrita individualidade, mas que é responsável por todos os homens.

Aqui, a desrresponsabilização do markenting vai por água abaixo, pois, se o individuo que compra é responsável por si mesmo e por toda a humanidade em seu ato, o próprio profissional de marketing também o é quando realiza suas estratégias. Cada profissional de marketing é responsável por toda a humanidade quando realiza um ato. Esse profissional, sabendo das possíveis péssimas consequências que seus atos podem acarretar deve assumir sua responsabilidade, e não jogá-la no individuo que compra. Aqui, a questão da responsabilidade, que é intimamente ligada com a liberdade, traz a tona o conceito de ética. O profissional de marketing que realiza atos que podem ser nocivos à sociedade (não necessariamente são), relegando sua responsabilidade aos indivíduos que compram, está sendo anti-ético. É como certos funcionários de banco que concedem empréstimos a pessoas segundo um calculo, mas que no fundo sabem que essas pessoas não poderão pagar tal empréstimo. Para se desresponsabilizar, esses funcionários dizem que o calculo foi feito (mesmo sendo balela) e que, no fim das contas, foi a pessoa que solicitou o empréstimo quem fez a escolha.

Portanto, não sei dizer se o marketing é capaz de criar valores, ou necessidade e desejos ou se só se aproveita deles. Entretanto, para apontar responsáveis, isso não importa. O fato é que, segundo Sartre, tanto o individuo que compra como o profissional de marketing são responsáveis pelos seus atos com vistas a toda a humanidade. A responsabilidade é mútua. Não se trata de atribuir um papel maligno ao marketing, mas sim orientá-lo para a ética. O marketing pode servir a coisas positivas quando se responsabiliza pelos seus atos e desenvolve a consciência de que cada ação deve promover o bem de todos.

4 comentários:

  1. Dando uma olhada nos textos de Faria, temos como a causa do consumismo demasiado a preguiça da pessoa em escolher?

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  2. Olá, Renan. Obrigado pelo comentário.
    Só conheço esse texto de Faria. Utilizei-o porque ele resume o tipo de defesa que o marketing faz de si mesmo quando o assunto é consumismo. Podemos dizer que, nesse texto, Faria não aponta causas explicitas para o consumismo, só tira o marketing da reta. Implicitamente, ele parece relegar a culpa do consumismo na própria sociedade ou, pior, numa espécie de essência do ser humano (seriamos assim mesmo? Sartre martela aqui também). Aqui, apesar de ter algumas ideias, me abstive de apontar culpados para o consumismo. O que defendo aqui é que, independente de culpados, via Sartre, o marketing não pode tirar o dele da reta.

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  3. Parabéns thi, seu blog é ótimo! Adorei este post envolvendo os conceitos de Sartre aplicados ao consumismo e o marketing. Sendo eu uma possível futura existencialista, concordo totalmente com o que escreveu. Na hora de apontar culpados, nenhum pode "tirar o seu da reta".. Como o filósofo explica, cada um é responsável por suas escolhas e renúncias, por isso a dificuldade de atribuir responsabilidades.
    Mas, sinceramente, eu não acho que procurar este "culpado" para o consumismo seja uma tarefa fácil, ou até mesmo possível, pois os motivos para se consumir algo são muito subjetivos. Pode ser que a pessoa seja totalmente influenciável pelo marketing, que seja de sua personalidade esse exagero no consumo, ou até mesmo uma maneira de "escapar" da realidade.. Portanto, o ponto de vista do pesquisador é que vai dar um sentido ao resultado, atribuindo a responsabilidade ao marketing ou ao consumidor.
    Um grande beijo querido, já tem outra seguidora do blog :*

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  4. Ane! Obrigado pelo comentário, é muito bom ter você aqui. Bom, tenho uma consideração crítica sobre o que você escreveu. Na verdade, nesse texto, não busco culpados. O que tento explicar aqui é que, por Sartre, independente dos motivos de consumo serem "muito subjetivos", isso não desresponsabiliza ninguém. É justamente a discussão da busca de culpados que acaba levando a num lero lero que fica circulando e aí, no limite, todo mundo renuncia sua responsabilidade. Quando você diz que o pesquisador, sobre o seu olhar de psicologa, é que vai dar um sentido à responsabilidade, você está fugindo de Sartre hahaha. Explico pq. A filosofia de Sartre é uma crítica à uma ponta solta do pensamento de Freud. Quando Freud nos apresentou o inconsciente, a ideia de sujeito, autonomo, foi pro saco. Sartre, com medo de que essa ideia pudesse desrresponsabilizar as pessoas, puxou a orelha de Freud. Independente das estruturas subjetivas, dos impulsos inconscientes, Sarte responsabiliza a todos nós. Justo por isso, ele não diz que a liberdade é uma dádiva, um presente. Ele diz que o ser humano está CONDENADO à liberdade. A ética Sartriana, assim como sua filosofia, é duríssima. Viver sob essa filosofia não é pra qualquer um.

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